A franquia “Bourne” poderia ter sido encerrada tranquilamente no terceiro filme, “O Ultimato Bourne“, mas nós sabemos como Hollywood funciona. Fez sucesso? Terá continuação. No caso, duas, mas com propósitos distintos e curiosos.
Enquanto o quarto filme, “O Legado Bourne” (The Bourne Legacy, 2012, EUA), deu prosseguimento à trama sobre o programa secreto de criação de assassinos profissionais da CIA e focalizou em outro agente (interpretado por Jeremy Renner), no que podemos chamar de spin-off, a mais nova entrada da série, “Jason Bourne” (2016, EUA), funciona como uma espécie de resgate do personagem vivido por Matt Damon e, assim, age tanto como sequência para os eventos pós-“Ultimato” quanto como prequel, já que são revelados elementos sobre o passado do personagem, prévios inclusive a quando o conhecemos em “A Identidade Bourne” (que Doug Liman dirigiu com bastante competência, diga-se de passagem).
Em nenhum desses dois filmes, nós encontramos uma necessidade de acrescentar algo que possa ter ficado mal resolvido nos três primeiros longas da franquia baseada nos livros de Robert Ludlum (já falecido, portanto, os novos filmes assumiram vida própria). Então, no fundo, no fundo, é apenas uma forma de manter a máquina funcionando.
A boa notícia é que se Tony Gilroy não comprometeu a qualidade da trilogia na direção de “O Legado Bourne”, a volta de Paul Greengrass às rédeas traz de volta a excelência em filme de ação que tanto marcou os dois longas que ele dirigiu (“A Supremacia Bourne”, em 2004, e “O Ultimato Bourne” em 2007).
O estilo de filmagem de Greengrass pode passar por um frenesi típico dos diretores que tentam imitá-lo justamente pelo impacto que causou em “Bourne”. Sua câmera é inquieta, mas não se engane quanto ao extremo controle que ele mantém sobre a filmagem e, principalmente, a montagem, realizada por Christopher Rouse (que aqui estreia como roteirista, mas que trabalha com Greengrass como montador há cinco filmes já). As cenas de luta e de perseguição (e não apenas de veículos, pois há uma perseguição de hackers que se passa basicamente em duas salas) são orquestradas com planos curtos e curtíssimos, alguns provavelmente com duração inferior a um segundo, mas todos são escolhidos cirurgicamente para o bem da continuidade. Assim, Greengrass e Rouse conferem lógica ao caos de modo que o espectador não fica tonto, mas, sim, excitado e inquieto na poltrona. É um tipo de montagem que causa uma certa comoção na nossa percepção e que os maus imitadores só conseguem transformar em confusão.
Mas não é somente ação desenfreada. O inglês Greengrass — que desponta para Hollywood com o excelente thriller político “Domingo Sangrento” (2002), sobre o massacre de 30 de janeiro de 1972 na Irlanda, e que após o sucesso de “A Supremacia Bourne” realiza o impactante “Vôo United 93” (2006) — tem em seu gene cinematográfico a parcimônia tão necessária para guardar energia e usá-la nos momentos certos. Nesses momentos de calma, que podem inclusive surgir no meio de uma sequência de ação, e não apenas intercalados entre elas, note como o diretor utiliza bem os planos que mostram o ambiente e as pessoas que testemunham os eventos. É o feijão com arroz bem cozido, saboreado e digerido.
Há, também, dois elementos narrativos muito bem sacados em “Jason Bourne”. O primeiro é a localização geográfica de Bourne quando nós o reencontramos e ele está vivendo de lutas clandestinas (meio como Sylvester Stallone em “Rambo III” — foi inevitável não lembrar). Ele está na Grécia, o chamado “berço da civilização”, e seu drama é justamente redescobrir como ser uma pessoa normal, se é que será possível, depois de todo o trauma que passou com a perda da memória e o que soube de sua condição de procurado. “Conhece a ti mesmo”, diz a famosa máxima inscrita no Templo de Apolo em Delfos.
O outro elemento é a pertinente e bem aproveitada atualização da trama para os dias atuais (afinal, já são quase dez anos desde “Ultimato”), incluindo aí a crise e as manifestações de rua na própria Grécia e também os perigos da vigilância governamental e o fim da privacidade em tempos de redes sociais e conectividade absoluta e irrestrita. Neste ponto, cabe ainda ressaltar o ótimo casting (outra boa referência da franquia desde o seu início) que acrescenta ao elenco Alicia Vikander, como a ambiciosa (e por isso mesmo ambígua) agente da CIA Heather Lee; Tommy Lee Jones, fazendo as vezes do diretor veterano da agência; e Vincent Cassel, como o “contato” que persegue Bourne.
“Jason Bourne” é, então, este eficiente filme de ação e espionagem, que, como eu comentei anteriormente, não acrescenta nada de fato necessário à história do protagonista, não subverte nada em termos narrativos (diferente do que ocorre em relação a “Ultimato” e “Supremacia”), tampouco começa algo que você fica louco para saber no que vai dar. “Extreme ways are back again“, sem dúvida, como canta Moby na icônica música-tema da franquia. Mas como 99,9% de Hollywood hoje em dia, sejam os bons os maus filmes, este está na zona de conforto. Pelo menos você encontra o que você procura e vai embora satisfeito. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.