Uma das mais bonitas e significativas cenas de “Aquarius” é uma troca de olhares. A jornalista cultural Clara (papel de Sônia Braga) recebe em sua casa a namorada do sobrinho, Julia (interpretada por Julia Bernat, de “Campo Grande”) e a jovem pede permissão para colocar no toca-discos um dos inúmeros vinis da coleção de Clara. Enquanto a música rola, as duas mulheres se tornam cúmplices em um sorriso.
Àquela altura, o espectador já sofreu o bastante junto com Clara para compreender o motivo de seus olhos se encherem de lágrimas. Até ali, há no filme uma descrença assustadora em relação à juventude que agora é adulta, representada por personagens como a cética filha de Clara, Ana Paula (papel de Maeve Jinkings); o empreendedor do “tipo focado”, Diego (Humberto Carrão); ou ainda a jovem jornalista que entrevista Clara no início do filme sem qualquer interesse real em ouvi-la — ela queria só aspas para uma manchete provocativa.
A incapacidade de ouvir — e ouvir de verdade, absorver conhecimento, seja da fonte que for — é o que esses jovens adultos e tantos outros da geração nascida do cinismo imperativo pós-anos 80 têm em comum. Mas Julia ouve, como Clara.
Naquela troca de olhares, elas se encontram em uma ponte sobre um suposto abismo geracional. Suposto porque ninguém deveria se distanciar das pessoas mais velhas e esse é um entendimento que faz Clara também ter mais afinidade com Tomás (Pedro Queiroz) do que com a mãe dele. E como avó, Clara representa a memória, elemento de que é constituída a espinha dorsal não só de “Aquarius”, mas da vida de qualquer pessoa.
Apesar de, na superfície, o filme não propor uma complexidade, a abordagem que Kleber Mendonça Filho faz das coisas banais da vida é profunda e muito intensa, é de onde ele tira a sua sofisticação cinematográfica.
Isso porque “Aquarius” é um filme que fala muito das relações de afeto que construímos não apenas com pessoas, mas com lugares que deixam de ser apenas lugares, com objetos que de ser apenas objetos, com músicas que deixam de ser apenas músicas e, claro, com filmes, que como “Aquarius”, deixam de ser apenas filmes para significar aquele “algo mais” que é tão pessoal, tão íntimo e tão difícil de representar através de palavras, gestos, sons ou imagens se não for expressado por quem o sente.
A afetividade latente na tela vem de Clara, mas quem fala através dela é Kleber. E também Sônia, que sem dúvida alguma é também responsável pela construção dessa personagem imensamente humana. Clara é oceano em “Aquarius”. O grande feito do filme (mas são tantos) está na maneira como Kleber e Sônia conseguem fazer o espectador enxergar e compreender o que se passa dentro dessa mulher que se torna tão transparente quanto seu nome prenuncia.
E “Aquarius” não é só Clara, pois os sentimentos das pessoas com quem ela convive também estão representados. Há a memória da tia Lúcia (Thaia Perez) na primeira das três partes do filme, quando ela olha para a cômoda encostada na sala de estar enquanto parentes e amigos comemoram seu aniversário. Em flashbacks que surgem como projeções mentais dessa mulher tão madura quanto Clara será no capítulo seguinte, ela relembra uma trepada incrível e inesquecível que teve em cima daquele mesmo móvel, onde, no momento presente, estão apoiados alguns enfeites e pessoas que não imaginam o significado afetivo daquele objeto.
Voltemos à troca de olhares entre Clara e Julia. A jovem diz que a música que escolheu significa muito para ela. Clara se emociona porque entende o que aquela garota está dizendo e o quanto uma música consegue dizer o que nós muitas vezes não somos capazes de expressar sozinhos. Afetividade pela música, representada também na cena em que Clara, jovem (interpretada por Barbara Colen. quase uma Elis Regina), saca uma fita cassete da bolsa e coloca “Another One Bites the Dust”, do Queen, para tocar no carro com os amigos, logo no início do filme. É uma cena situada em 1980, por sinal, o início da década mais afetuosa para a geração que hoje está em seus 30-40 anos.
Se Sônia com sua personagem serve como extensão do pensamento e dos gostos de Kleber, percebemos isso também pelas músicas escolhidas a dedo para a trilha sonora e pelas referências cinematográficas que estão presentes o tempo todo em “Aquarius”, desde o pôster de “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick, que está pendurado na sala de estar do apartamento de Clara, até o uso do zoom, que me parece uma opção de estilo muito consciente dele junto com os fotógrafos Pedro Sotero e Fabricio Tadeu. Opção que se deve muito provavelmente à sua relação de afeto e de pura cinefilia com o cinema das décadas de 1960 e 1970, quando o zoom era largamente usado, independente se era feio ou não (e não é).
Paradigmas estilísticos como esse imprimem a assinatura de Kleber em seus filmes, posto que em “O Som ao Redor” também percebemos nos movimentos das cenas em steadicam ou em dolly esse apreço estético que agora toma outra forma e sem soar como algo gratuito. Afinal, ele assim também nos aproxima das coisas e de Clara, nos faz ver de perto, em detalhe, o que no plano aberto poderia passar despercebido.
É interessante observar também como as relações pessoais mais afetivas de Clara não são com seus filhos, mas com a tia e com o neto. É incomum vermos esse tipo de relação familiar protagonizar um filme. Geralmente dá-se mais valor à relação pais-filhos ou entre irmãos, e não vemos muito ser representado o sentimento que nós temos por tios, sobrinhos, primos, que, não raro, podem ser tão importantes quanto para alguém quanto os progenitores. E há ainda a relação de Clara com a empregada, Ladjane (Zoraide Coleto), que também é família e em quem Kleber recupera tema trabalhado em “O Som ao Redor”, a relação com os patrões, mas aqui em uma outra face.
Cupins
É de seu filme anterior que o cineasta também busca outra importante relação de afeto representada em “Aquarius”: a relação com o lugar em que se vive. “O Som ao Redor” também tem a transformação ou desfiguração imobiliária de Recife como tema. Em ambos os filmes, vizinhanças deixam de ser cativantes com suas casas ou pequenos edifícios e dão lugar a condomínios luxuosos e ostensivos, mas sem nenhuma personalidade. Prédios totalmente assépticos, que não diferem muito de hotéis ou hospitais, onde preocupa-se com tamanha hiperproteção que mais parecem presídios de segurança máxima do que qualquer coisa que possa ser chamada de lar. A boa vizinhança dá lugar ao isolamento. As pessoas não se conhecem, pois não convivem.
A luta de Clara em não ceder às agressivas ofertas da construtora que deseja derrubar seu prédio é uma luta por preservar tudo isso: suas memórias, seus afetos, seus laços com tudo que fez e que faz parte da sua vida, tudo que forma a sua personalidade, a nossa personalidade. Clara luta para permanecer no lugar que é seu por direito e de onde querem arrancá-la das formas mais baixas.
A metáfora é perfeita, pois Clara é mulher forte e não há golpe que a derrube. Clara é moralmente violentada, por pessoas próximas e anônimas, não bastasse toda a dor que o câncer lhe fez sofrer, não bastasse sua dificuldade em encontrar uma nova companhia que a aceite de coração aberto. Ela não consegue sequer avaliar se gostou ou não do sexo contratado. Não há afeto com esses homens.
Sem dúvida alguma, “Aquarius” é o mais importante filme brasileiro do ano. O longa chamou a atenção primeiro no prestigiado Festival de Cannes, na França, em maio deste ano, ocasião na qual a equipe e o elenco do filme fizeram um protesto no tapete vermelho, denunciando “o golpe de estado em curso no Brasil”. O protesto reverberou em todo o mundo e, claro, incomodou muita gente, no governo até então interino principalmente, que chegou inclusive a dar ao filme classificação indicativa 18 anos — e rebaixando-a para 16 anos após a estreia e mais protestos.
As cenas de nudez e sexo que existem em “Aquarius” são breves e não são apelativas. Elas desafiam alguns tabus, mas nada que justifique censura. O que pareceu realmente foi que a metáfora política que pode ser tirada do longa é que foi o principal motivo para a decisão do Ministério da Justiça.
Afinal, os jovens, sobretudo, é que precisam ver “Aquarius”. Pois é um filme que fala sobre lutar por aquilo em que se acredita e não abaixar a cabeça para a ganância de quem acha que pode tudo porque tem dinheiro.
Pois a luta de Clara é por mais isso: não deixar que os cupins corroam o seu caráter. É uma luta que vale ser lutada e que deveria ser a de todos nós também, pois, ressurgindo dos escombros da descrença, esse filme de garra que é “Aquarius” termina por passar a esperança de que existem pessoas, velhas e jovens, que podem trazer dias melhores. ■
AQUARIUS (2016, Brasil). Direção: Kleber Mendonça Filho; Roteiro: Kleber Mendonça Filho; Produção: Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd, Michel Merkt; Fotografia: Michel Merkt, Fabricio Tadeu; Montagem: Eduardo Serrano; Música: Mateus Alves; Com: Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Zoraide Coleto, Carla Ribas, Fernando Teixeira, Buda Lira, Bárbara Colen; Estúdio/Produtora: CinemaScópio Produções, SBS Productions, VideoFilmes, Globo Filmes; Distribuição: Vitrine Filmes. 146 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.