“O Silêncio do Céu”, novo filme do diretor Marco Dutra (“Trabalhar Cansa”, “Quando Eu Era Vivo”), acaba de ser lançado no país, depois de uma pré-estreia vitoriosa no Festival de Gramado no início do mês, quando ganhou três troféus: o Kikito de Melhor Som, o prêmio especial do Júri e o Prêmio da Crítica de Melhor Longa-Metragem Brasileiro.
Apesar de ser uma produção nacional, o longa foi filmado no Uruguai e é falado em espanhol. O enredo gira em torno do terrível drama vivido por Diana, personagem de Carolina Dieckmann, que é vítima de um estupro dentro de sua própria casa e escolhe manter o trauma em segredo. As coisas ficam ainda mais complicadas porque seu marido, vivido pelo ator argentino Leonardo Sbaraglia, testemunhou o crime e não conseguiu fazer nada para deter os agressores. E o silêncio que toma conta do casal se transforma, aos poucos, também em uma forma de violência.
“O Silêncio do Céu” é um filme de gênero, algo que Marco Dutra já havia buscado fazer em seus trabalhos anteriores, recorrendo sempre ao suspense e ao horror para contar histórias de pessoas comuns em situações adversas. A diferença neste novo filme é que a trama não partiu dele, mas do livro escrito por Sergio Bizzio, que ele mesmo adaptou para a tela junto com a cineasta Lucía Puenzo. Em coletiva de imprensa no Festival de Gramado, Marco disse que fazer um filme de gênero não é e nunca deveria ser um problema no cinema brasileiro:
“Gosto muito de filme de gênero, gosto muito de musical, de filme de terror, ficção científica. Acho que são ferramentas e não tem porquê não usá-las. Não há um país detentor dos direitos dessas ferramentas, Tudo bem a gente usar no nosso cinema e eu acho que a gente tem conteúdo suficiente para fazer bom uso dessas ferramentas. No caso desse filme, estava muito sugerido no roteiro a ideia de thriller, a ideia de suspense e o que eu fiz foi, talvez, intensificar um pouco isso com a direção, Talvez trazer, aproximar o filme mais do suspense do que a primeira leitura do roteiro pôde sugerir. Esse foi o processo desse filme especificamente nessa questão do gênero. Trabalhar a ideia de thriller, a ideia de suspense, mas com uma mão leve. Foi o que eu tentei fazer.”
O clima de tensão que toma conta de “O Silêncio do Céu” levanta comparações com os filmes de Alfred Hitchcock. Mas Marco Dutra esclarece que não era o seu propósito fazer uma homenagem ao “mestre do suspense”, embora o uso de recursos e técnicas que o próprio Hitchcock inventou para o gênero tenha sido inevitável.
“É delicado trabalhar com referência no sentido de… Claro, se você tem um grau de cinefilia, você vai ter um mínimo de repertório, então isso é natural. Mas não tinha nenhuma referência do tipo ‘esse plano a gente vai homenagear tal filme, esse plano a gente vai homenagear aquele outro filme’, apesar de eu achar que isso acaba acontecendo naturalmente. Especialmente se você está falando de suspense, porque aí você está falando de cinema clássico. Então, se você vai falar de cinema clássico, que é um cinema que eu gosto muito, não tem como evitar o Hitchcock, porque ele é um dos autores da gramática, ele ‘escreveu’ a obra original, sei lá, ele inventou algumas das coisas, então você usa a gramática para construir seu texto. Então, sim, é um dos meus diretores preferidos e eu acho que no caso do suspense ele é um pouco incontornável. E isso o Brian De Palma também diz: a questão não é homenagear o Hitchcock com os filmes e sim usar a gramática, usar as ferramentas que estão à disposição.”
A personagem de Carolina Dieckmann é a primeira que aparece, logo no começo do filme e já numa cena de violência extrema, quando ela é estuprada. “O Silêncio do Céu” chega aos cinemas num ano em que a discussão sobre a violência sexual contra a mulher tomou conta da mídia, principalmente após o surgimento de notícias de casos de estupros coletivos em diversos locais do Brasil. Apesar de o filme não ter sido feito com o objetivo de discutir esse assunto especificamente, Carolina Dieckmann afirma que fica satisfeita por seu trabalho de alguma forma colaborar para a reflexão sobre um tema tão delicado e importante.
“É uma felicidade quando a gente consegue através da arte levantar uma discussão, chegar nas pessoas como necessidade de discutir, como necessidade de falar sobre um assunto, mesmo que a gente tenha feito o filme muito antes desse ápice em que se encontra essa discussão no Brasil. Não é uma coisa proposital, o filme não foi lançado por causa disso, quer dizer, não tem nenhuma elo de ligação com isso, mas eu acho que quando a gente atinge, mesmo sendo uma coincidência, quando a gente atinge um assunto que está sendo discutido e que a gente pode ilustrar de alguma forma e buscar essa discussão como referência, eu fico extremamente feliz de ter esse serviço, além do filme.”
A atriz também disse que o cinema proporciona uma oportunidade para que ela enfrente novos desafios na carreira, buscando personagens mais complexas e que mudem o tom do tipo de papel a que ela é comumente associada devido às novelas em que já atuou.
“Eu de fato contei muito com a sorte de ter esse papel um pouco de heroína romântica na televisão, disso ter me proporcionado convites para personagens de curvas dramáticas bem interessantes. Mas acho que eu também forcei isso, eu tenho interesse pelo drama, pela intensidade, pela profundidade, pela naturalidade, mostrar aquilo da maneira mais crua possível. Sempre foi meu interesse. E de uma certa forma, essa minha ida para o cinema esporádica, porém profunda, é um reflexo um pouco também desse meu interesse num outro lugar, porque obviamente, ao longo da minha carreira, eu fui chamada para fazer outros projetos que eu não tive… Não é ‘interesse’, porque eu não estou menosprezando os projetos que eu não fiz, mas não me eram necessários. Eu acho que o que eu fiz, todas as vezes, foi de alguma maneira necessário naquele momento.”
Outro grande desafio para Carolina Dieckmann foi aprender um novo idioma, já que sua personagem, apesar de ser brasileira, vive no Uruguai com o marido e fala espanhol durante quase todo o filme. Ela conta como foi cumprir essa tarefa:
“Foi extremamente difícil porque eu falava muito pouco e quando você decora um texto, quando você estuda um texto na sua língua, você, a partir daquele estudo, constrói todo um cenário para aquele texto de possibilidades, de colocar aquilo na sua embocadura, de transformar aquilo de uma maneira natural, de fazer as sensações ganharem sentido a partir daquele texto. E quando se trata de uma língua que você não tem conhecimento profundo, onde você não tenha esse cenário já muito claro, isso fica muito difícil porque você fica um pouco limitado dentro daquilo. Eu tinha pouco tempo, eu tive quatro semanas de aula de espanhol, então eu busquei que as minhas aulas fossem todas a partir do roteiro e uma imersão naquilo, para poder construir mesmo uma casinha, sabe? Casinha de possibilidades para não me deixar insegura na hora de filmar, para que aquilo não fosse um limitador na hora de me comunicar em cena, principalmente. Então, foi o trabalho mais difícil que eu já fiz nesse sentido. Muito relacionado a isso mesmo, de você sentir a língua mãe e onde você vai buscar sentido para aquilo numa língua que você conhece pouco.”
O uso do som é um dos melhores aspectos de “O Silêncio do Céu”. Em uma das cenas de maior tensão do filme, que se passa na rua, em frente ao ateliê onde a personagem de Carolina Dieckmann trabalha, o ronco do motor do veículo usado por um dos personagens toma conta da sala de cinema enquanto acompanhamos o desenrolar da ação, sem nenhum diálogo: apenas o barulho do carro. Marco Dutra conta que ele quis dar personalidade aos carros dos personagens justamente através do som.
“O som pra mim é sempre uma das etapas mais prazerosas. Eu gosto muito de trabalhar o som e eu sou meio meticuloso, então eu fico com a equipe de edição de som, no caso o Daniel Turini e o Fernando Rena, que são parceiros de longa data, que também fizeram alguns dos meus outros longas, e a gente ficou discutindo cada barulhinho, cada ruído e um dos ruídos mais divertidos de fazer foram os carros no filme. Os carros eram muito importantes para mim no filme, os carros deveriam ser a extensão das personalidades dos personagens. Então tem o carro do Mário, o carro do Andrez, o carro do Nestor… E o carro do Nestor, que é uma picape, é um dos carros protagonistas. Esse carro, o som dele é uma mistura de, se não me engano, seis motores diferentes, que a gente articulou na edição de som com diferentes intensidades. E eu sempre defendi a cena da frente do ateliê como o clímax desse personagem, desse carro amarelo. E foi uma das mais legais de fazer porque eu sabia que a gente podia chegar no limite da intensidade, a gente podia estourar a caixa de som ali. É o som mais alto do filme e é uma mistura de seis motores. Nesse momento estão todos em funcionamento. E foi muito legal. Eles produziram esses motores, isso não é de biblioteca de som. O Daniel e o Rena foram gravar esses carros.”
Os filmes anteriores de Marco Dutra, “Trabalhar Cansa” e principalmente “Quando Eu Era Vivo”, também se destacam pela trilha sonora. O diretor voltou a trabalhar com os irmãos Gustavo e Guilherme Garbato na música para o “O Silêncio do Céu”. Porém, surpreendentemente, ele decidiu tirar quase todo o instrumental do filme. O diretor explica o motivo:
“Tem um aspecto interessante desse filme, que o Guilherme Garbato, que é o compositor de “Quando Eu Era Vivo” e também de “O Silêncio do Céu”, ele foi muito parceiro na filmagem. Ele já estava trabalhando comigo e o Guilherme chegou a compor uma trilha de orquestra muito bonita, muito poderosa para o filme e, no fim das contas, foi uma decisão muito difícil, mas a gente decidiu não usar essa trilha porque já tinha um universo sonoro muito rico no filme. Se a gente colocasse essa trilha, que era maravilhosa, as coisas competiriam demais e uma acabaria por engolir e fragilizar a outra.”
Apesar de não estar no filme, a música original de “O Silêncio do Céu” pode ser ouvida na trilha sonora lançada em formato digital nas plataformas de streaming iTunes, Spotify, Deezer, entre outras. O álbum já está disponível para você ouvir e já entrar no clima do filme, que poderá ser visto em breve nas salas de cinema de Belo Horizonte e outras cidades do país.
[O texto acima é uma transcrição da matéria veiculada no programa Cinefonia, da Rádio Inconfidência, que foi originalmente ao ar em 24/09/2016. Áudio disponível aqui.]
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.