Atenção: este texto contém spoilers.
A franquia “Star Trek”, ou “Jornada nas Estrelas” para os fãs brasileiros saudosistas, comemora em 2016 a marca de 50 anos desde a exibição do primeiro episódio de sua clássica série de TV. Como não podia deixar de ser, o novo filme, “Star Trek: Sem Fronteiras”, presta diversas homenagens, principalmente ao saudoso ator Leonard Nimoy, intérprete do Sr. Spock, que morreu em fevereiro do ano passado.
Ele atuou nos dois filmes anteriores, vivendo a versão futura do vulcano (ou versão atual, dependendo do ponto de vista cronológico que você preferir) e contracena com a versão jovem, papel do ator Zachary Quinto. Um dos aspectos mais interessantes da homenagem a Nimoy e à franquia em “Star Trek: Sem Fronteiras” se dá justamente na forma como a realidade encontra a ficção dentro da história.
Antes do início da missão principal da trama, Spock é comunicado da morte do Spock sênior. A notícia provoca nele uma estranha, mas perfeitamente compreensível angústia, que vai de encontro com a proposta original da franquia de trazer reflexões sobre a (in)finitude da vida e o nosso lugar no universo.
Embora fosse desejável que os questionamentos de Spock recebessem um desenvolvimento mais central no filme e envolvessem mais os outros personagens (que acabam sendo separados em núcleos individuais de ação), é interessante pensar na forma como o drama do vulcano surge e, principalmente, como ele se resolve imageticamente.
Em certo ponto, já perto da conclusão do longa, o Spock jovem se senta sozinho em um aposento e olha para um retrato. Na foto está toda a tripulação original da Enterprise. A motivação da cena pelo cinquentenário da série é óbvia. Mas me parece pertinente levar em conta o espelhamento que se dá nesse momento em que um Spock olha para o outro e reconhece nele o seu eu futuro.
Já é uma camada metalinguística curiosa no âmbito ficcional imaginarmos o que se passa na cabeça de um personagem diante do seu duplo. Mas aqui ela ainda tem outra camada por baixo, em que o ator que faz o personagem busca o seu reflexo no intérprete do mesmo papel. Quantas vezes já tivemos esse tipo de interação entre diferentes versões do mesmo personagem? Não é fácil responder.
É claro que os dois Spocks contracenaram nos dois filmes anteriores e de maneiras muito mais diretas, dialogando inclusive. Essa questão do duplo já era instigante lá atrás, mas o que faz o encontro dos Spocks (ainda que virtual ou espiritual) em “Star Trek: Sem Fronteiras” também ser relevante é o fato de ele ter ecos em outros espelhamentos que ocorrem durante o filme e que estão intimamente ligados ao tema do filme.
Em determinado momento, o Capitão Kirk (Chris Pine) também confronta o seu reflexo em um vidro. Da mesma forma, o vilão Krall (Idris Elba) enfrenta sua imagem em um espelho. O que os três personagens possuem em comum nesses espelhamentos é a busca pelo autoconhecimento, que quando não é alcançado leva a uma deformação do eu, como fica demonstrado em Krall, que pode ser considerado, nesse espectro, um duplo do próprio Kirk. Afinal, o jovem viajante estelar começa o filme questionando sua função e seus objetivos a frente da Enterprise.
Também é interessante notar o paradoxo presente nesse monólogo que Kirk grava no diário de bordo, pois ele reflete sobre o tédio de não fazer nada diferente, embora o seu trabalho seja procurar e desvendar os mistérios do espaço e a inalcançável fronteira final. É uma contradição muito contemporânea. Basta pensarmos no quanto usamos mal a internet, limitando suas possibilidades a uma ou duas dezenas de sites, a maioria ainda por cima filtrada pelo algorítimo das redes sociais. Agora, aplique essa limitação ao mundo ao nosso redor.
Infelizmente, o próprio filme não parece interessado em buscar algo novo em termos narrativos e de uso da linguagem cinematográfica, embora possibilite as reflexões até aqui esboçadas (o que já é um grande serviço prestado, é bom salientar). Depois de dois filmes muito bons, em que houve uma reformulação no estilo da franquia para deixá-la mais ao gosto do público atual (leia-se “jovens de 20 e poucos anos”), este terceiro escolhe ficar na zona de conforto.
Não que a trama que coloca Kirk, Spock e cia. em perigo num planeta selvagem seja ruim ou mal contada. Não é isso. Ela é apenas pouco original, repetindo fórmulas de outros filmes de aventura, sejam eles no espaço ou não.
Vale notar que houve uma mudança na direção, já que os dois filmes anteriores foram comandados por J.J. Abrams. “Star Trek: Sem Fronteiras” é dirigido por Justin Lin, que veio da franquia “Velozes e Furiosos” e talvez até por isso trouxe para o filme a experiência adquirida com cenas de perseguição, explosões e lutas. O resultado é que este é o “Star Trek” que mais se distancia do estilo original da franquia, que dava preferência à reflexão ao invés da ação. E como Lin filma tudo muito de perto e com cortes rápidos, é provável que o espectador se sinta perdido e confuso nas cenas mais movimentadas.
A maior interação entre Kirk e McCoy (Karl Urban) é bem-vinda, tal como a manutenção de Scotty (Simon Pegg) em funções que não sejam apenas a de alívio cômico, mas deve-se notar como os demais personagens coadjuvantes são mal aproveitados, entre eles Chekov, interpretado por Anton Yelchin, que morreu tragicamente este ano e a quem o filme também é dedicado. Uhura (Zoe Saldana) também não tem grandes chances, o que é problemático se considerarmos que ela e Spock estão “dando um tempo”. Ou seja, ela deve estar ancorada em um homem para ter algum destaque? Por falar em mulheres, a nova personagem, a guerreira Jaylah (Sofia Boutella), é outra cuja participação decepciona: ela tem um design interessante, é carismática, mas não diz muito a que veio no fim das contas a não ser aumentar a participação feminina. Até mesmo a sua forma de lutar não tem nada demais, já que parece ter aprendido tudo num curso de defesa pessoal. Merecia mais.
Apesar dos problemas, “Star Trek: Sem Fronteiras” ainda consegue ser um filme com bons momentos. Há uma cena de batalha que faz bom uso da música “Sabotage”, dos Beastie Boys (tema de Kirk no “Star Trek” de 2009) e outra que remete a games clássicos de “navinha” como “Space Invaders” e “Galaga”. A estratégia de Kirk para iludir seu inimigo é inventiva e visualmente atrativa (e de novo usa a ideia do espelhamento, veja só). Também gosto da luta final, que usa o sistema de ventilação de Yorktown, embora não supere o duelo contra Khan em “Além da Escuridão: Star Trek”.
No geral, o filme fica acima da média dos blockbusters que chegaram ao cinema em 2016. Mas convenhamos, a temporada está fraca. E para uma franquia que em 50 anos teve muitos altos e baixos, com alguns filmes bem piores do que este, o que temos aqui não é nada para se jogar no lixo. Vida longa e próspera e que o próximo seja melhor. ■