Jean-Claude Bernardet. Este nome certamente é uma referência para quem estuda, faz, escreve ou apenas gosta de cinema. A definição de “maior crítico vivo do Brasil”, encontrada na sinopse de “A Destruição de Bernardet“, no catálogo da 20ª Mostra de Tiradentes, diz muito sobre os propósitos deste interessante filme-ensaio escrito e dirigido por Cláudia Priscilla e Pedro Marques: existe um mito a ser desconstruído.
Mais que isso, talvez, seja o caso de estarmos diante de um anti-documentário e uma anti-cinebiografia, mas, antes de tudo, um filme em que o protagonista se ressignifica e faz isso por meio do próprio cinema.
Na entrevista a seguir, realizada em Tiradentes, eu converso com Cláudia e Pedro sobre (veja só) a construção de “A Destruição de Bernardet”. Eles falam sobre como Bernardet teve participação ativa na realização do longa e como o projeto surgiu de uma continuidade do filme anterior da dupla, o curta “Vestido de Laerte” (veja aqui). Eles também refletem um pouco sobre a tendência contemporânea do cinema documental em direção à hibridez.
Antes de seguirmos para a entrevista, eu recomendo que você que ainda não viu o filme (além de Tiradentes, ele também foi exibido no Festival de Brasília e na Mostra de São Paulo, entre outros) assista pelo menos ao trailer abaixo para ter uma breve ideia do que é “A Destruição de Bernardet”.
Eu estive no debate no dia seguinte à exibição do filme e foi interessante a discussão sobre o título, principalmente quando você, Cláudia, diz que “a reinvenção está incluída na destruição”, algo que, vendo o filme, é possível identificar. Essa“destruição” talvez seja algo como uma brincadeira, de você desconstruir esse mito em torno do Bernardet. Eu queria saber de vocês a importância dessa reinvenção, na questão não só da figura dele, como também na questão sobre a crítica de cinema, pois se fala muito em “morte do cinema, morte da crítica”, e temos no Bernardet uma figura importante da crítica. E tem ainda essa questão da reinvenção do formato documental, da tentativa de fazer uma espécie de biografia, mas que não é exatamente isso. É muito mais uma desconstrução desse personagem, não é?
CLÁUDIA: Eu e o Pedro fizemos juntos um curta que se chama “Vestido de Laerte” e a gente já vem trabalhando com essa linguagem, que é borrar a imagem do documentário e ficção e fazer filmes híbridos. Então, na verdade, “A Destruição de Bernardet” é a sequência de uma linguagem que a gente vem explorando juntos como dupla de diretores. Aliado a isso, tivemos alguns acordos como Jean-Claude, tais como não fazer um documentário que fosse chapa branca e não ter uma grande entrevista para depois trabalhar em cima disso. Portanto, só essas regras pré-requisitadas já fizeram com que nós começássemos a montar uma estrutura baseada nisso.
Sobre esse caráter híbrido, de documentário e ficção, como foi a participação do Bernardet na construção da linguagem usada no filme?
PEDRO: Nós todos nos acostumamos a isso. Virou até uma brincadeira entre nós, porque sempre que nos referíamos ao filme como documentário, o Jean-Claude fazia questão de dizer que isso não existe, que esse negócio de documentário e ficção já não existe, que essa divisão é uma besteira. Eu também acho, mas eu entendo que ainda se faça essa divisão. Mas não é um documentário. É um filme. Como ele sempre fez questão de dizer também. Daí você vê essa participação e a influência direta. Esses conceitos vieram do Jean-Claude e nós fomos e somos influenciados por ele.
CLÁUDIA: Só para complementar, essa questão que eu falei sobre “Vestido de Laerte” é um dado muito importante, porque Jean-Claude gostou muito do curta e foi a partir disso que a gente começou a conversar sobre esse novo filme. Ou seja, vem realmente da continuidade de um trabalho de linguagem que eu e o Pedro estamos atentos e desenvolvendo na nossa cinematografia.
Eu ainda não vi o curta. “Laerte” seria Laerte Coutinho?
CLÁUDIA: Sim. O filme vai muito em cima da biografia de Laerte e muito em cima de um livro de Laerte, que se chama “Laertevisão”. Pegamos muitas falas desse livro e roteirizamos. Mas para fazer “Vestido de Laerte”, como era uma ficção sobre coisas documentais, nós passamos por uma série de entrevistas com Laerte. Nós ficamos alguns dias conversando e gravando essas conversas, que serviram de inspiração e também entraram como offs no filme. Então, aí começa essa questão da hibridez. Mas as imagens de Laerte, do filme, foram todas criadas e encenadas para o curta.
PEDRO: Interessante que o comentário de Jean-Claude sobre o filme, quando ele viu, e que me parece que o agradou em algum aspecto, é que ele falou que não era um filme sobre Laerte, mas um filme ao redor de Laerte, através de Laerte. Era uma visão de mundo através dele. Acho que isso talvez seja o ponto de contato principal entre o curta e esse longa com o Jean-Claude, que também não é um filme sobre, é um filme ao redor e através dele.
Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre a criação daquele personagem do Bernardet como um ermitão que anda pelas matas e come borboletas. Como foi a criação, a fruição narrativa disso? Como aquela figura se inseriu no filme?
CLÁUDIA: A gente ficou um ano gravando com o Jean-Claude com uma equipe mínima, que era formada por mim, o Pedro e o Zonner [Ricardo Zonner Jr.], que fazia o som. Ficamos muito tempo acompanhando o Jean-Claude e essas questões narrativas (a borboleta, a caminhada…) foram ideias criadas ao longo desse período. Alguma coisa a gente já tinha uma ideia, mas a borboleta, especificamente, ela surgiu ao longo desse processo. Durante a produção do filme, também estávamos procurando uma estrutura narrativa para ele. Então, isso foi um processo coletivo e que comungou com a produção do filme.
Há influências de outros cineastas, outros cinemas que inspiram vocês a tornar essa hibridez como parte fundamental na criação dos seus filmes?
PEDRO: Ah, tem um monte, certamente!
CLÁUDIA: Sempre tem, né? Acho que aqui no Brasil tem o Adirlei [Queiroz], que fez isso brilhantemente no “Branco Sai, Preto Fica” [2014]. Tem o “FilmeFobia”, do Kiko Goifman… Nosso filme tem uma inspiração no “Um Filme Para Nick” [de Wim Wenders, 1980], que foi falado no debate. E acho que há uma tendência do documentário a sair do formato clássico da entrevista e migrar para outras narrativas. Essa é uma questão contemporânea que eu acredito ter nos influenciado também.
PEDRO: Vendo “Baronesa” eu me lembrei de “A Vizinhança do Tigre” [de Affonso Uchoa, 2016], que também trabalha essa hibridez. Não que tenha essa influência direta, tem influências de enquadramento, de abordagem. Mas eu acho que atualmente vai nessa linha do Adirlei, da “Vizinhança do Tigre”, do próprio “Baronesa”… “Baronesa” tem bastante disso. Acho que é uma tendência, esse cinema está se influenciando e se auto-afirmando como um formato mais livre.
CLÁUDIA: E é muito bacana que o cinema possa desconstruir a questão de gênero, né? A questão de ter a hibridez dentro das obras cinematográficas. Eu acho muito interessante sair dessas caixas que são ou o documentário ou a ficção. O borrar fronteira, a quebra dessas caixas interessa bastante pra gente.
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Ouça o podcast cinematório café em que discutimos “Baronesa” — aqui — e confira a nossa cobertura completa da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.