Não consigo imaginar um lugar melhor para a exibição do documentário “Martírio” do que em praça pública, como aconteceu no domingo, 22/01, em Tiradentes, dentro da programação da 20ª edição da Mostra de Cinema. Geralmente, esses espaços da cidade são associados ao lazer, mas aqui serviu para o desconforto necessário da indignação, tomada de consciência e debate, que de alguma forma ou de outra afetou o público em geral e não somente os profissionais ligados ao cinema que participam da Mostra.
O filme retrata a longa história de luta dos Guarani-Kaiowá, povo indígena que sobrevive no Mato Grosso do Sul e vivencia graves problemas fundiários, que têm levado a um processo de extermínio de sua etnia. Esse processo é fruto de um conflito de forças desproporcionais, já que os indígenas resistem como podem frente aos poderosos empresários do agronegócio, sem proteção e apoio efetivo do Estado.
Na praça, o documentário teve sua recepção potencializada, escancarando em tela grande, ao ar livre e em espaço democrático e abrangente, o genocídio e a guerra que a maioria dos brasileiros desconhece ou ignora, apesar de esse conflito já perdurar por décadas sem solução. A indignação maior surge daí, de constatar que se trata de um povo que sofre sozinho, invisível à mídia e à justiça social.
Apesar de não ter um formato inovador, o documentário nos mantém interessados e envolvidos do início ao fim – mesmo tendo duração de 2h40min — especialmente pela excelente montagem. Narrado em primeira pessoa, a coragem, o olhar e escuta tão humanos e respeitosos de seu diretor, Vincent Carelli, também chamam a atenção e remetem à figura de Eduardo Coutinho (“Cabra Marcado Para Morrer”, “Edifício Master”, “Jogo de Cena”). Há uma riquíssima pesquisa com a apresentação de fatos históricos, políticos e sociais envolvidos, mesclados ao que foi registrado por ele em 40 anos de acompanhamento dos indígenas e seus depoimentos.
Além da questão indígena (sob os aspectos não só territoriais, mas também culturais), o filme perpassa outras temáticas importantes como moradia, capitalismo, a falta de representatividade das minorias na política e a questão ambiental. Importante salientar a intervenção feita pelos realizadores do filme, que entregaram uma câmera para os indígenas e os ensinaram a utilizar o equipamento, a fim de que pudessem gravar as constantes ameaças e violências a que são submetidos, tornando a imagem uma estratégia de defesa e resistência.
Depois da exibição na praça, houve bate-papo com Vincent Carelli, que também é antropólogo e indigenista, Ernesto de Carvalho, integrante da equipe de realização do filme, Lila Foster, curadora da mostra, e de todo o público presente. Era notável a comoção das pessoas, que se manifestaram principalmente com elogios, agradecimentos e reflexões. A maioria das perguntas foram relacionadas à circulação e distribuição do filme. Educadores manifestaram o desejo de exibi-los em suas salas de aula.
Percebeu-se uma vontade coletiva de compartilhá-lo, torná-lo conhecido por um público ainda maior. O entendimento geral foi de que se trata de algo que precisa ser visto e discutido pela sociedade com urgência. Carelli e Carvalho disseram que, terminada a circulação do filme no circuito de cinemas, eles pretendem disponibilizá-lo na internet.
Antes de Tiradentes, “Martírio” passou por outros festivais do país, ganhando prêmios e suscitando tantos debates quanto aqui. E assim, aos poucos, ele vai ganhando cada vez mais espaços, angariando vozes, despertando engajamento. Assim, quem sabe, essa visibilidade negada aos indígenas durante tantos anos seja enfim corrigida e eles sejam incluídos, respeitados e dignamente reconhecidos como cidadãos brasileiros que são. Que o poder de transformação do Cinema seja visível.