A 20ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes – que começou nesta sexta-feira, dia 20 – tem como tema “Cinema em reação/Cinema em reinvenção, trazendo filmes que são um tipo de resposta à efervescência do momento político e social que vivemos. Inevitavelmente, o tema toca, entre outras coisas, na urgência de se pensar sobre representatividade de minorias, o feminino e feminismo. A começar pelas homenageadas dessa edição, Helena Ignez e Leandra Leal. Duas grandes personalidades do cinema brasileiro que, além de possuírem uma carreira sólida e icônica como atrizes, também são diretoras, imprimindo seus olhares e modos particulares de fazer cinema.
Na abertura, antes das homenagens, o público foi recebido com belas e poderosas performances artísticas, com destaque para as apresentações de Josi Lopes, Bia Nogueira e Grazi Medrado. Josi performou com um tambor, atraindo toda atenção com sua voz, presença de palco e som provocador. Bia Nogueira cantou nossas dores e verdades com uma versão tocante da música “Perfeição”, da banda Legião Urbana. Grazi Medrado chamou a atenção para a luta das mulheres e seu espaço no cinema. Em diálogo com toda essa atmosfera, o filme para encerrar a noite e abrir a programação da mostra foi o primeiro longa metragem dirigido por Leandra Leal, “Divinas Divas”, um documentário de beleza visual marcante, onde Leandra apresenta seu olhar amoroso e muito pessoal sobre a primeira geração de artistas travestis do Brasil, com nomes de peso como Rogéria, e sobre o Teatro Rival do Rio de Janeiro, lugar onde as artistas se apresentavam e com o qual Leandra tem um forte vínculo familiar.
No dia seguinte, sábado, os debates abordaram a temática da mostra e a trajetória das homenageadas. O primeiro, com o tema “Cinema em Reação, Cinema em Reinvenção: Questões de Representatividade e de Proposta Estética”, teve medição do crítico de cinema Francis Vogner dos Reis e os convidados; Cléber Eduardo, Heitor Augusto e Patrícia Mourão. Cléber, crítico de cinema de São Paulo, é curador da Mostra de Tiradentes. Em sua fala, Cléber destacou o que norteou a seleção dos filmes para a programação e suas percepções a respeito do conjunto formado. Ele observa que os filmes dessa edição apresentam três abordagens recorrentes: diversidade de propostas, diálogo com o cinema de gênero (em especial os filmes da Sessão Bendita) e personagens que vivenciam um conflito em ou com seu espaço.
Cléber também citou alguns grandes filmes que são exemplos de filmes que “reagem”. “Aquarius”, de Kléber Mendonça Filho, e “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert, são alguns deles. Segundo Cléber, “Aquarius transcende a nossa cultura. A partir do particular o filme alcança o universal e, portanto, não se limita ao instantâneo, ao histórico ou local.” Outro ponto interessante do debate foi atentar para a necessidade de refletirmos sobre como os filmes nos afetam. É desejável que a provocação não seja simplesmente pelo assunto, mas principalmente pelas formas e olhares. Para além da reação, deve haver reinvenção. Pois “a reação é constatação e a reinvenção, provocação”.
Patrícia Mourão, pesquisadora e programadora de cinema de São Paulo, começou sua fala levantando a questão de seu papel na mesa e reivindicando o local para Amaranta César, importante pesquisadora do cinema e diferença cultural, estética e política. Mas ao mesmo tempo, enriqueceu o debate propondo a reflexão sobre como reagimos aos filmes urgentes e suas falhas. Será que não estamos sendo “reacionários” quanto à defesa do cinema? É preciso compreender que o campo do cinema deve ser ampliado e não limitado ao que pode ser determinações de crítica, curadoria, visões particulares. “Acolher urgências da minoria e o reconhecimento do outro não é fazê-lo falar nossa linguagem”. A aceitação do diferente não deve ser condicionada ao enquadramento desse dentro dos nossos limites de compreensão.
Por fim, Heitor Augusto, crítico de cinema de São Paulo, destacou a importância de se colocar em outro lugar, permitir que o cinema seja ver através do outro. “De qual lugar pensamos os filmes?” Ele discutiu sobre o que seria um ponto cego, aquele que não nos permite nos reconhecermos na subjetividade do outro, o que atrapalha a forma como vemos e interpretamos uma obra cinematográfica. “O problema é o filme ou somos nós?”
O segundo debate foi focado nas carreiras de Helena Ignez e Leandra Leal. Na mesa, além das duas atrizes/diretoras e do mediador Pedro Maciel Guimarães, crítico de cinema de São Paulo, estavam presentes os convidados: Murilo Salles (diretor com quem Leandra Leal trabalhou em “Nome Próprio”), Ruy Gardnier (jornalista, pesquisador e crítico de cinema e música do Rio de Janeiro) e Daniel Schenker (crítico de cinema do Rio de Janeiro). Logo de início, a imagem de todos à mesa, já demonstrava uma falha: como uma mesa de debate que homenageia e discute a trajetória de duas profissionais mulheres é mediada e conduzida somente por homens?
Samatha Brasil, crítica de cinema e curadora do Cineclube Delas do Rio De Janeiro que assistia o debate, levantou essa questão no momento em que o mesmo foi aberto para perguntas. Além disso, ela lembrou a presença de pesquisadoras e críticas que estão na mostra e que poderiam ter sido convidadas para a mesa. Também citou o Coletivo Elviras, recentemente criado para unir e fortalecer as mulheres que produzem conteúdo sobre cinema no Brasil. Tanto Helena quanto Leandra concordaram com as colocações.
Apesar das boas contribuições dos debatedores homens, em especial do diretor Murilo Salles, que destacou como Leandra transcende suas atuações para a entrega total a arte, a falta do olhar feminino sobre o trabalho de Helena Ignez e Leandra Leal criou uma espécie de vácuo, de visível limitação para a discussão do tema, pois muito se falou sobre elas como atrizes, mas pouquíssimo como diretoras e menos ainda sobre como se deu essa transição para ambas. Em contrapartida, acabou suscitando uma discussão importante sobre a participação (e validação) das mulheres não só como realizadoras de cinema, mas também como pensadoras desse campo. Foi intrigante notar que durante essa discussão específica, os homens, em certos momentos, interromperam as falas de Helena e Leandra, ainda que fosse para concordar com elas, sentindo a necessidade de interrompê-las para se posicionarem, quando o certo seria esperar que terminassem suas falas para depois se manifestarem.
A programação do dia seguiu com as mostras de filmes e apresentações artísticas. Um curta da Mostra Cena Mineira, o “Feminino”, de Carolina Queiroz, chamou a atenção pela qualidade e por dialogar com o filme “Divinas Divas, de Leandra Leal. O longa “Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira, também se destaca pela história sensível centrada numa adolescente interiorana, seus conflitos e sua transformação frente a mudanças bruscas em sua rotina e sua relação com o pai. Mas a grande experiência foi assistir ao potente “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Uma obra que reúne temas importantes da atualidade – como movimentos populares por moradia, refugiados, capitalismo e consumismo – de uma forma inventiva (que inclusive mistura ficção e realidade), envolvente e muito humana. A Mostra de Cinema mal começou, mas já se pode dizer que a força das mulheres está pulsante por aqui.
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.