Além do seu 20º aniversário, a Mostra de Cinema de Tiradentes comemorou em 2017 os 10 anos da Mostra Aurora, que desempenha o importante papel de revelar e incentivar a produção de cineastas independentes e com até três longas-metragens no currículo. O cineasta maranhense Frederico Machado fez parte da década da Aurora em 2015, quando competiu com o seu segundo longa-metragem, “O Signo das Tetas”. Este ano, ele retornou a Tiradentes, mas agora na recém-criada Mostra Olhos Livres, com o seu terceiro longa, “Lamparina da Aurora“. E foi com um dos mais impactantes filmes da seleção deste ano que Frederico se tornou o primeiro vencedor do Troféu Carlos Reichenbach.
Fruto de um trabalho de pura dedicação ao fazer cinematográfico, realizado com recursos próprios e muito amor à arte, “Lamparina da Aurora” transita entre o onírico, o mistério, a religiosidade e a poesia representada pela obra de Nauro Machado, pai de Frederico, cujos poderosos versos surgem em narração em off ao longo do filme. Um enredo básico nos apresenta a três personagens que convivem com o assombro da morte, mas o que mais conta aqui — e também em “O Exercício do Caos” e “O Signo das Tetas” — é a experiência. Trata-se de um filme muito bem-acabado, com fotografia e desenho de som primorosos, envolventes. Um filme que pode parecer difícil, inacessível, mas que opera justamente na reflexão, que convida o espectador a interpretar aquelas imagens e sons para encontrar o seu próprio caminho de apreciação.
Aliás, algo curioso, é que no debate sobre “Lamparina da Aurora”, realizado um dia após a exibição do longa, Frederico confirmou haver no filme uma influência do cinema de horror, já que a narrativa transcorre quase mesmo como um pesadelo. Essa fala do diretor vai de encontro com a declaração do curador Cléber Eduardo no debate de abertura da mostra, quando ele falou que a seleção de filmes de Tiradentes este ano estava permeada pelo cinema de gênero — algo que se confirmou, mesmo que em alguns casos tenha sido apenas um flerte e em outros uma entrega total.
Na entrevista a seguir, realizada em Tiradentes, eu converso com Frederico sobre as influências não apenas do cinema de gênero, mas de outros cineastas e filmes sobre o seu processo criativo. Como ele é fundador da Lume Filmes e da Escola Lume de Cinema, em São Luís, eu aproveitei para também perguntar sobre o mercado audiovisual, tanto sob o ponto de vista da produção quanto da distribuição.
As imagens dos seus filmes são sempre muito fortes, muito impactantes. Como elas surgem para você, quais são as origens disso? Tem ali a questão da poesia, que vem muito do contato com o seu pai, eu acredito, e com o trabalho dele. E tem também o contato com as coisas locais, a religiosidade, um certo misticismo que existe no ali no Maranhão. Como essas imagens surgem para você, para concebê-las e colocá-las nos filmes?
FREDERICO: Eu sempre tive uma relação muito forte com a imagem, vendo muitos filmes e tendo uma educação visual toda voltada para o cinema. Um pertencimento à sala escura mesmo. Na minha adolescência existiam salas enormes de cinema, então, minhas tardes e minhas noites eram quase 6-8 horas por dia dentro de uma sala escura realmente grande. Acho que tinha um sentido quase de sonho ou pesadelo, aquelas imagens me remetiam a isso. E eu sempre gostei muito de cinema denso, de cinema forte, que tenha uma pegada existencial bem forte, como Bergman, Dreyer, Polanski, cinema tcheco dos anos 60…
Marcou-me muito esse cinema, a sala escura, esses sonhos e pesadelos que vinham até mim, traduzidos em cinema, em ver filmes no cinema. Acho que infelizmente falta isso hoje em dia. Esses novos meios, como internet, ver filme em celular, ver filme em salas de cinema muito pequenas, em lugares que são quase um home theater… Perde um pouquinho esse sentido de sonho mesmo que o cinema pode proporcionar.
Eu tive a sorte de morar ao lado de um cinema que era quase uma cinemateca. Na época era no Rio de Janeiro, então, me eduquei vendo esse tipo de filme. E quando voltei a São Luís, me impactou muito a população da cidade, a pobreza da cidade, que era diferente do Rio. Eu morei no Rio a minha juventude toda, daí quando voltei para São Luís, isso me marcou muito, essa sociedade pobre, fragmentada, com desnível social imenso, mais essa religiosidade, a característica do povo mesmo, de amargura, de se envolver com a bebida, com religião, com festa, o popular, tendo isso como escape, sempre. Então, me marcou muito esse sincretismo da cidade. Vem daí esses temas, temas que eu gosto muito.
Como funciona, na sua realização, a influência de outros diretores, outros cinemas? Claro que quando a gente discute um filme, a gente vai nessas referências. No debate sobre “Lamparina” aqui em Tiradentes, por exemplo, foram citados vários diretores aos quais o seu filme nos remeteu, mas nunca é algo que se identifica de imediato. São sensações que esses outros diretores passam e que a gente identifica também no seu filme. Queria que você falasse um pouquinho dessa busca e dessa transformação das referências em algo seu.
FREDERICO: É incrível, porque as referências estão intrínsecas na gente. O próprio filme que a gente gosta, a gente tenta adaptá-lo para o nosso ideal de cinema também, mas isso muda muito no processo.
A ideia inicial [de “Lamparina”] era fazer um drama social. Então, eu peguei alguma coisa de Glauber Rocha, por incrível que pareça. O filme dialoga pouquíssimo com ele, não tem nada a ver nesse corte final. Inicialmente era Cinema Novo, cinema do Glauber, mas logicamente tendo alguma ligação com o cinema de Tarkovsky, que eu sempre gostei, do próprio Béla Tarr, com planos longos, planos-sequências. Teria planos-sequências maiores do que os que estão no filme, de movimentação de câmera que também tem pouquíssimo. Mas vai mudando. No momento em que você escreve, vai pensando isso, mas no momento que você filma é outra coisa. Vai depender muito das condições de filmagem.
A gente faz cinema independente, cinema de guerrilha, então as próprias condições vão impondo adaptações àquilo que você almejou, tentou criar inicialmente. E no processo de montagem é uma coisa totalmente nova. Então, surgiu realmente um filme mais de cinema de gênero, que eu sempre gostei muito. Aí vem referências, como Polanski em início de carreira, principalmente, como “O Inquilino”, “Repulsa ao Sexo”… Tem muito do Mario Bava. A gente assistiu a muito Mario Bava, cinema japonês, cinema oriental moderno… Mas as referências chegam naturalmente.
A gente montando o filme, trabalhando no sentido do filme, a gente descobre coisas. Por exemplo, a cena do estrangulamento lembra muito Hitchcock na montagem, mas o filme não tem muito a ver com Hitchcock. O suspense, como ele é trabalhado, não tem muito a ver. Mas aquela sequência específica eu vejo muito a questão de montagem, que lembra muito até “Frenesi”, a cena da gravata — lembra um pouco a montagem, a decupagem dos planos. Mas foi uma coisa natural. A gente montou o filme e depois de uma semana que fomos rever, a gente percebeu: “Olha essa cena aqui, Garros!” O [André] Garros, montador, não conhecia o filme do Hitchcock e aparece a mesma estrutura de montagem. Logicamente com menos recursos, porque foi filmado com menos planos. Não precisou de uma decupagem tão ágil e tão forte, nem mexer com a trilha sonora, efeito sonoro, para que tenha semelhança com a cena do Hitchcock.
Eu acho que isso surge naturalmente pela própria vivência que a gente tem de ver filme e fazer filme. Mas acredito eu que a tentativa de fazer um cinema original está presente, está clara. Embora tenha essas referências todas, eu não meu guio por elas, nunca me guiei em termos de ser parecido com Tarkovsky, ser parecido com Glauber Rocha, com Brian De Palma, com Hitchcock… Acho que vem naturalmente. São coisas que surgem do público, da crítica e de mim mesmo.
Você falou de Béla Tarr e ontem, quando acabou o filme, uma pessoa atrás de mim falou: “Béla Tarr!”
FREDERICO: É mesmo? Poxa, que massa! (risos) Eu acho diferente. Acho bem diferente hoje!
No debate ninguém citou, né? Mas ontem eu realmente escutei alguém comentando na sessão. Bom, o filme foi realizado como fruto de um trabalho da Escola Lume de Cinema. Queria que você falasse como está sendo esta experiência de formar esses talentos. Além dos seus filmes, veremos agora outros filmes de diretores formados lá, né?
FREDERICO: Com certeza, essa é a ideia. É mágico. Porque o Maranhão nunca teve escola de cinema. Na história do Maranhão, se eu não me engano, tem cinco longas feitos depois do “Exercício do Caos” [longa de estreia de Frederico]. Nunca tinha sido feito nenhum outro. E ter a possibilidade de formar uma turma com esse olhar livre, um olhar muito puro… Eles têm um olhar de multiplex, que é o cinema que predomina, o cinemão, que eu gosto muito também e eles gostam. Então, trazê-los para outros tipos de cinema, com a perspectiva de discutir esse outro tipo de cinema e ver como esses filmes chegam neles, em contraponto a essa visão que têm do cinema americano somente, é muito interessante.
Vejo também a grande vontade que eles têm de fazer cinema por justamente não ter tido outra escola antes. E agora tem duas: a nossa Escola Lume e a Escola Estadual que abriu depois da nossa. Então já é um fruto da nossa escola, que, do interesse por ela, surgiu a Escola Estadual no ano passado. Então, se vê um movimento cinematográfico muito forte no Maranhão. E acho que essa possibilidade vai melhorar, inclusive, o meu cinema, porque vai tratar mais o diálogo com as pessoas. E a gente contribuindo com escola, com distribuidora, com o Cine Lume, com o Festival Lume lá, a gente se sente muito orgulhoso e vemos o respeito que dedicam a gente.
Foram feitos três curtas desses alunos, no ano passado. A ideia é finalizar em março. Eu coloquei um a dois alunos em cada área e trabalhamos com eles de maneira muito amiga. Eles são sócios do “Lamparina”, que teve um custo de R$ 30 mil. Tudo bancado por mim e pela Lume, não tem edital, não tem nada. Então, o que o filme retornar depois de pagar esse custo irá para os alunos e para o elenco do filme, que também entrou como sócio. Quer dizer, pela crença de fazer um filme diferente, a possibilidade de ser distribuído pela Lume, ter o seu público, descobrir o seu público… Então, todos são sócios do filme. A equipe e elenco são de 10 pessoas. Também é uma forma de produzir cinema, eu acredito muito nisso. Não é pegar filme de R$ 2 milhões, R$ 3 milhões e ganhar ainda com isso depois, se vier público. Eu acho que é preciso pensar formas diferentes de produzir, distribuir.
A Lume também tem esse braço da distribuição, ou seja, participa do processo todo. Como é que está sendo a distribuição dos seus filmes para o cinema e fale um pouco também sobre como está o Lume Channel, lançado no final do ano passado. Como está sendo o início dessa plataforma de streaming?
FREDERICO: O mercado de DVD acabou. Eu estava conversando com o pessoal da Versátil e até para edições especiais está sendo muito difícil continuarem também. Eles tentaram box, com edições lindas, mesmo assim encontraram dificuldade. Então, é um mercado que não vai mais existir num tempo de cinco anos. Eu acredito que nem para colecionador.
O mercado de VoD (Video on Demand) eu acredito que seja o futuro, mas é um mercado que está sendo descoberto ainda. A gente abriu o Lume Channel em novembro de 2016, na fase beta. A ideia é abrir [a próxima fase] somente no final de março e está sendo adiado justamente pelas dificuldades tecnológicas e de programas mesmo, programas mais fáceis para a própria Lume administrar e os próprios parceiros cineastas terem esses dados todos mais facilmente. E para chegar ao público com qualidade em todos os aplicativos, televisores smart etc. Está demorando esse processo porque é muito novo ainda, né? Mas acho que é o futuro mesmo. E vai ser um futuro de nicho. Vão ter vários canais de VoD. Netflix está dominando, mas vão surgir muitos outros para vários setores, como documentários, séries para TV… Eu acho que vai ser dividido dessa forma.
E o mercado de cinema, infelizmente, está sendo dominado pelas majors, as salas estão ficando menores… Cinemas independentes ainda tentam existir e passar filmes nos quais acreditam, mas mesmo o exibidor desse cinema independente é muito pressionado pelo capital. Porque realmente a gente necessita de capital. A gente tem uma sala de exibição e a gente necessita desse capital para a sala existir. E o público não está prestigiando esse tipo de cinema e existem essas outras formas de veiculação de filmes. Não só de canais oficiais, mas de canais também que são importantes, esses canais até piratas mesmo, que eu não sou contra, pois são formas de ver filme interessante. O Making Off, por exemplo, que todo mundo conhece, todo mundo vai atrás e todo mundo vê filme importante e descobre muita coisa nova. Então, esse fator descobrimento, num canal desse, é muito importante, funciona quase como uma cinemateca hoje em dia, uma cinemateca virtual. Mas todos esses elementos dificultam muito para o setor de distribuição no Brasil e no mundo, hoje.
Então, eu vejo realmente com péssimos olhos a questão cinematográfica de exibição. Não tenho uma ideia do que pode ser daqui a 10 anos. Eu acho que a internet vai dominar muita coisa. Os festivais ainda estarão tentando mostrar coisas diferentes, tentando agregar e trazer público, mas através mais de marketing mesmo, no sentido de fazer festivais eventos. E os cinemas e distribuidoras também vão ter que entrar nessa onda, fazer filmes eventos. Por exemplo, a gente tem o filme do Bowie [“O Homem que Caiu na Terra”, relançado em janeiro, no Brasil] e a gente faz um show dentro da sala de uma banda cover do Bowie. A gente tem que se virar para tentar atrair o público. Ou manter, pelo menos.
O Lume Channel é uma forma, uma possibilidade, porque a gente vai ter muito cinema independente brasileiro para ser visto lá também. E é diferente dos outros canais porque vai ter análises críticas, entrevistas, ser mesmo um portal de cinema brasileiro e internacional autoral. Acho que é interessante, né? Não que os outros não sejam, mas que se forme um núcleo de pessoas que acreditam nesse cinema e que gostam, que queiram debater e que queiram fazê-lo crescer.
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Ouça o podcast cinematório café em que discutimos os filmes da Mostra Aurora — aqui — e confira a nossa cobertura completa da 20ª Mostra de Tiradentes.