Na imagem acima, Andreia, protagonista de “Baronesa”. Divulgação
Vencedora da Mostra Aurora na 20ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, a produção mineira “Baronesa“, dirigida pela estreante em longas Juliana Antunes, foi filmada na região Norte de Belo Horizonte e segue uma proposta de filme híbrido, em que a ficção e o documental se misturam. A exemplo de “A Vizinhança do Tigre”, de Affonso Uchoa (por sinal, um dos montadores de “Baronesa” e vencedor da Aurora em 2015), o longa tem como atrizes principais duas mulheres, Andreia e Leidiane, que interpretam elas mesmas e vivem no local onde as cenas acontecem. Ao mesmo tempo em que captura momentos da vida real, o filme tem cenas roteirizadas. Na conversa que eu tive, em Tiradentes, com Juliana e sua equipe (à exceção de Affonso, toda formada por mulheres), elas contaram como o projeto nasceu e revelaram um pouco dos bastidores das filmagens.
Como surgiu o interesse em fazer “Baronesa” e como você conheceu a Andreia e a Leidiane? Como foi descobrir essas personagens e convidá-las para fazer o filme?
JULIANA: Esse filme surgiu de uma curiosidade, vendo os ônibus no Centro de Belo Horizonte. Esses ônibus tinham nomes de mulheres. Quando eu vim morar na cidade, eu recebei uma recomendação de que eu não deveria pegar os ônibus vermelhos e verdes, só os azuis. Então, sempre me senti um pouco à margem, assim, por ser mulher. Um sentimento assim: “Ah, você é mulher no mundo, está sempre à margem”, e ver esses ônibus que levam à periferia e a cidade povoada por mulheres também à margem, isso me chamava à atenção.
Eu estava fazendo cursinho pré-vestibular e comecei a pesquisar isso. Não era um filme, era mais uma curiosidade sobre esses bairros e daí fui estudar Cinema e veio o interesse de fazer esse filme. Conversei com a Marcela [Santos, som direto] e a Giselle [Ferreira, assistente de direção], a gente tinha acabado de se conhecer, elas estavam na faculdade também. A gente começou a ir nesses bairros, vários deles, e começamos a perceber que as mulheres nunca estavam nos espaços públicos, sempre nos espaços privados. A gente começou, então, a usar o salão de beleza como um dispositivo, um local de concentração dessas mulheres.
Daí veio a pesquisa, logo depois conseguimos os recursos para realizar o filme, através do programa “Filme em Minas”, que infelizmente está extinto. Já estava definido que filmaríamos no Bairro Juliana e tínhamos outras personagens também mais certas, que acabaram não rolando por motivos vários, pois a vida é maior que o cinema mesmo. Andreia era uma cliente desse Bairro Juliana. Foi nesse momento que a Fernanda [de Sena, diretora de fotografia] entrou, um mês e meio antes de filmar. Rolou o convite para a Fernanda fotografar e obviamente eu já estava sondando por muito tempo uma equipe.
De fato eu queria romper os padrões de equipes tradicionais. Antes de fazer esse filme, eu havia trabalhado em outros como assistente de direção e eu não queria aquela equipe tradicional. Então, eu chamei pessoas em quem eu acreditei que realmente topariam essa entrega, dessa “punkeragem” que foi esse processo. A gente começa a filmas essas gatas lá no Juliana e eu já queria muito a Andréia no filme. A gente já sabia, né? Eu sentia muito que era ela. Mas ela não topava fazer o filme nem fudendo, então, foi cercar. Cercar e o filme foi chegando nela. Quando chegou, não teve jeito.
A gente morou um mês no Bairro Juliana, a equipe inteira, e foi um processo de trabalho durante o mês inteiro. Quando não estávamos filmando, estávamos falando sobre o filme. Acabou que não foi um convite, a Andréia não teve muita escolha, sabe? E a Leidi se convidou. Ela apareceu, ela foi um presente para o filme.
Você não é de Belo Horizonte, então?
JULIANA: Não. Eu sou de Itaúna.
O filme me lembrou muito “A Vizinhança do Tigre”, acho que não por acaso, porque o Affonso Uchôa é montador de “Baronesa”. Nessa questão de trabalhar com não atores, dessa naturalização deles junto à câmera, no set… Como foi esse processo de elas se acostumarem com a presença estranha de uma câmera ali, vocês com seus olhares de cineastas, preocupação em enquadrar… Vocês falaram no debate que não havia roteiro. Falem um pouco de como isso foi sendo construído junto com as atrizes.
JULIANA: Acho que nem só com a câmera, mas com a nossa presença, né? Acho que o filme é muito dissonante do “Vizinhança do Tigre” quando a gente considera que o Afonso filmou amigos, vizinhos. A gente saiu para o mundo. Eu não sou da periferia, a Gisele não é da periferia, Marcela não é da periferia. A Fernanda tem uma relação mais próxima com a periferia, mas não do lugar que filmamos. Então, a primeira negociação foi a nossa presença. Depois que a nossa presença foi aceita, acho que a câmera era só um dispositivo para se realizar. A nossa presença sem câmera era muito difícil também. De fato era isso.
O filme não teve um roteiro clássico, mas teve uma espécie de roteiro, claramente construído em algumas cenas muito ficcionais, outras não. Mas as cenas tinham tópicos de indicação de onde deveriam partir, onde deveriam chegar. Algumas cenas se desdobravam em 40 minutos ou 1 hora de take. Isso ia rendendo assuntos que, às vezes, na montagem nos interessou mais do que quando a cena foi feita. Essa coisa de não roteiro, quando começamos a filmar, era até um problema, porque as questões essenciais do filme eram ditas quase de forma en passant, então não dava esse roteiro.
Outra coisa da câmera é que a equipe era muito reduzida. O filme foi feito por cinco mulheres durante um mês, depois por quatro durante alguns meses e, por fim, Fernanda, Marcela e Gisele. No final eram só três mulheres. Então, isso facilita muito. Acho que o método de produção está absurdamente associado ao resultado final. O nosso corte está na tela, está cristalizado. Fizeram uma pergunta e eu achei tão absurda: “Você pensou nessas cenas antes de montar?” Como não, caralho?! Um filme de anos, que atravessou nossas vidas! Dá vontade de dizer: “Não! Eu filmava e jogava Playstation!”
Eu gostaria que vocês falassem sobre isso, sobre definir esse filme. Ficção, documentário, híbrido… Tem que definir? Acho que não, né?
JULIANA: Não gosto da definição. A gente filmou a vida. Ela é maior que isso, sabe? Mas tem que colocar, né? Os festivais exigem. É documentário? É ficção? É verdade? É mentira? Eu não estava interessada se era verdade ou mentira. Eu estava interessada em ter um bom filme, em ter o melhor filme possível. Mesmo.
Falem um pouco dos bastidores daquela cena que é um grande susto, quando realmente começa um tiroteio. Como foi viver aquele momento ali?
JULIANA: Só mijei na roupa mesmo. (risos)
MARCELA: Essa cena foi um dos takes de uma hora que a Juliana mencionou. Começamos com uma proposição e depois desembolou naquela conversa que elas mesmas estavam tendo há um tempo entre elas. E é muito interessante essa pergunta da câmera, porque a gente estava lá o tempo inteiro, com câmera, som, e elas estavam conversando entre elas, sabe? A gente já tinha feito a proposição de cena e ela só continuou. E aí rolaram aqueles tiros, todo mundo saiu correndo.
JULIANA: Foi a cena que salvou, né? Colocar lá o agradecimento: “Nem, ficou show…” (risos)
Além dessa, outras cenas que podemos considerar “impossíveis”, por exemplo, a cena da cocaína, em que também há uma naturalidade, aquilo acontecendo em frente à câmera…
JULIANA: Aquela cena foi muito roteirizada. Absurdamente roteirizada. Foi uma cena que eu pensei, que eu conversei com os dois.
E a cenas das crianças, que foi muito questionada no debate aqui na Mostra, que tem a questão do abuso… Pelo que a Leidiane e a Andreia falaram lá, aquilo aconteceu na hora, né?
JULIANA: Aquilo foi o desdobramento de uma cena que estávamos negociando. Não roteirizando, mas negociando para que fosse feita. Uma cena que elas dariam um depoimento, como há o depoimento da Andreia, e aquilo aconteceu como um desdobramento daquilo, com as crianças. Que eu vejo como uma brincadeira de criança. É uma cena que funciona para expor a reação da Andreia, entende? É uma cena que começa ali, para que você possa entender mais a Andreia quando você vê o plano seguinte, sabe? Você vê a reação dessa personagem que se transforma em outra. Ela é a super-heroína do filme.
MARCELA: Ao mesmo tempo que ela expõe os próprios preconceitos, ela também demonstra um receio de estar acontecendo com a criança aquilo que já aconteceu com ela no passado.
FERNANDA: O que acontece com os meninos é algo que está completamente imbricado no que aconteceu com ela. Ela falou isso no debate.
Para finalizarmos, Juliana, quais são as suas influências de outros diretores, outros cinemas a que você gosta de assistir e que você, de uma forma ou de outra, acaba trazendo para o seu cinema, para a sua forma de filmar?
JULIANA: Pedro Costa, com certeza. Depois que comecei a ver os filmes dele é que comecei a mudar um pouco esse projeto, que tinha começado como um dispositivo de documentário, de entrevistas, enfim. Muito importante, a Fernanda me apresentou um filme do Rithy Pahn. Ele se chama “Papel Não Embrulha Brasas”. Filme lindo, que eu acho que tem muito ali. Chaplin. Foi bom ver Chaplin para fazer aquelas cenas que a galera não falava muito (risos). Elas falavam demais! Comecei a ver muito Chaplin lá. Tem um filme dele que eu adoro, “The Tramp”. Acho que foi um filme importante para o meu filme. Então, é “Papel Não Embrulha Brasas”, “No Quarto da Vanda” [In Vanda’s Room, 2000, de Pedro Costa], “The Tramp”. E “A Vizinhança do Tigre”, claro.
Só mais uma coisa. Acho massa que as mulheres queiram fazer filmes e é difícil juntar uma equipe que acredite em você e que siga esse padrão de equipe clássica. Às vezes você não vai ter tanta moral quanto essas meninas me deram, Marcela, Gisele, Fernanda. Acho que eu nunca vivi um processo de dedicação tão grande de uma equipe. Isso foi muito potente. Foi a melhor experiência que eu vivi em uma equipe, de estar ali mesmo e… Então, meninas, parem de lavar pratos em sets de playboy, parem com isso de serem stands de produção onde não acreditam em vocês. Mete a louca, porque enquanto vocês estão lavando prato e escrevendo edital, eles estão ganhando editais. E quantos mais editais e mais filmes eles fizerem, menos filmes vocês irão fazer, mais vocês vão fomentar esses caras. Pára de vacilo! Bora lá!
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Ouça o podcast cinematório café em que discutimos “Baronesa” — aqui — e confira a nossa cobertura completa da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.