por Isabel Wittmann, especial para o cinematório
Entre o irregular o bem-intencionado (mas não muito mais que isso), seguem mais algumas resenhas de filmes que pude conferir na Mostra. Para ler todos os textos publicados, clique aqui.
“Canção de Granito” (Song of Granite, 2017), de Pat Collins
Cinebiografia do cantor de músicas folclóricas Joe Heaney, o filme é o candidato indicado pela Irlanda ao Oscar 2018. Com uma bela fotografia em preto e branco registra diversos momentos da vida de seu protagonista, interpretado, também, por três atores diferentes, desde sua infância até a maturidade. Espelhada em sua trajetória, acaba sendo possível captar o papel que os judeus ocupam naquela sociedade tão tradicionalmente católica. A paisagem do campo também é apresentada como um elemento de força.
Joe tem contato com a música desde a infância e sua relação com ela é de quase devoção: quando canta, fecha seus olhos e praticamente entre em transe. O formato é experimental e além das recriações dramáticas, mescla o uso de filmagens documentais. Infelizmente, para além da criatividade artística ou da beleza visual, o filme não consegue engajar na sua trama, que intercala músicas muito parecidas umas com as outras com imagens quase paradas. A sensação pode ser de repetição constante.
“O Jovem Karl Marx” (Le jeune Karl Marx, 2017), de Raoul Peck
Depois do aclamado documentário “Eu Não Sou Seu Negro”, Raoul Peck retorna com essa cinebiografia correta, que aborda os anos de juventude do filósofo Karl Marx (August Diehl), quando entabulou amizade com Friedrich Engels (Stefan Konarske), com quem futuramente escreveria o “Manifesto do Partido Comunista” e que possibilitaria a criação de “O Capital”. A esposa de Marx, Jenny von Westphalen (Vicky Krieps) aparece com a terceira personagem de importância e com uma trajetória interessante: a moça rica e estudada, de família tradicional, que largou tudo para casar-se com o rapaz pobre, judeu e de posicionamentos políticos controversos.
Pensadores da época cruzam o caminho, diferentes posicionamentos são apresentados, bem como o contexto político que fervilhava em diversos países. O diretor não se furta a retratar até mesmo as controvérsias, como o fato de Engels financiar as obras de Marx com dinheiro obtido das fábricas de sua família, ou seja, ser ele mesmo um capitalista lucrando com a alienação da mão de obra dos trabalhadores e com isso bancando a produção do amigo. A obra tem o estilo de um telefilme, como se fosse uma daquelas produções de época que a BBC costuma fazer, mas seus personagens fascinantes garantem a atenção do espectador.
“Zama” (2017), de Lucrecia Martel
Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) é um funcionário da coroa espanhola na Argentina, a quem foram prometidas riqueza e honrarias que jamais se concretizaram. Morando em um local ermo, tenta manter a aparência europeia com uma peruca desgrenhada, utilizada apenas quando necessária, e uma casaca mal cortada. A solidão e o ridículo são suas companheiras, enquanto constantemente solicita poder voltar para casa. Os planos são trabalhados com academicismo e o desenrolar da história é lento.
O personagem-título é retratado como uma figura sem grandes méritos e o empreendimento “civilizatório” da colonização aparece fracassado, perdido na inutilidade da função burocrática de seus responsáveis. Curiosamente, apesar desse posicionamento marcado, pouca voz é dada aos povos de outras etnias retratados: pessoas negras e indígenas perpassam a trama sem agência real ou como a confirmação dos medos e preconceitos trazidos da Europa.
Filmes recentes, como “O Abraço da Serpente” e “Z: A Cidade Perdida”, apesar de também terem seus problemas, especialmente no que tange à exotização, abordam de maneira mais interessante o contato entre homens brancos e populações ameríndias. O filme ganha fôlego no terceiro ato, com a materialização da ameaça que ronda à boca pequena sob o nome de Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele), mas, como um todo, o resultado final é árido e até mesmo enfadonho.
“Esplendor” (Hikari, 2017), de Naomi Kawase
Pessoas atravessando a rua. Uma mulher sorrindo na calçada. Um homem de paletó espera o táxi com expressão de raiva. A sequência pode não ser exatamente assim, mas são descrições como essa que abrem o novo filme de Naomi Kawase. As pessoas familiarizadas com textos para fins de acessibilidade rapidamente a reconhecerão. Misako (Ayame Misaki) é uma criadora de áudio descrição para cinema. Ela narra o que aparece na cena, para que pessoas cegas possam apreender o contexto dela. Em uma reunião com um grupo de teste, para aprovar o trabalho que está criando, Misaya (Masatoshi Nagase) critica o resultado do trabalho, explicando que ela não está apenas falando sobre o que a cena mostra, mas projetando suas próprias emoções, não permitindo que eles tirem suas conclusões. Outro personagem revela que ele é um fotógrafo famoso que ainda enxerga, embora com dificuldade, pois gradativamente está perdendo a visão.
A trama é centrada nessa perda e em como ela o afasta da sua arte. Mas a diretora usa a trajetória do personagem para comentar sobre a relação pessoal que entabulamos com o cinema e como o utilizamos para nos conectarmos com outras pessoas, mesmo que fictícias. O cinema, visual ou narrado, é sentido por cada um de uma maneira diferente.
A câmera do personagem é apresentada como aquilo de mais próximo ao seu coração que ele tem. “Se afastar daquilo que mais ama é insuportável”, diz Misako. Mas talvez se o filme fosse realizado por pessoas cegas, e não videntes, a cegueira não seria tão central ao drama, pois não seria apenas isso a definir o protagonista. A amizade entre os dois personagens forma uma dinâmica interessante, unindo a profissão e os interesses de ambos, mas o romance que se delineia parece desencaixado de contexto.
Em se tratando de visual, a diretora se esmera: o rosto de Ayame Misaki é sempre enquadrado de forma elegante e as cenas são muito bonitas, regadas de luz. Também não se pode acusa-la de não ser constante em seu estilo, bastante açucarado. Mas em se tratando da temática abordada, o filme é impressionantemente pouco acessível. A diretora cria um comentário metalinguístico sobre o processo de fazer cinema e sobre como cada um tem sua percepção individual sobre a arte apreciada. Propõe que, por conseguinte, esta não deve ser guiada, embora seja isso que ela tente fazer, conduzindo-nos pelos caminhos emocionalmente confusos de sua criação.
Isabel Wittmann é crítica de cinema, doutoranda em Antropologia Social na USP, autora do blog Estante da Sala e uma das criadoras do podcast Feito Por Elas.