Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

“Pendular”: arte, relacionamentos e suas complexidades

por Fernando Machado

Em dias em que se fecha uma exposição que julgam não ser arte, uma peça de teatro que julgam não ser arte, e até um espetáculo de dança que julgam não ser arte, ver um filme como “Pendular” que fala tão puramente da arte é um bálsamo para os apaixonados por arte, seja ela qual for.

O filme acompanha um casal que se muda para um galpão abandonado na área portuária do Rio de Janeiro para ali poderem trabalhar sua arte. No caso dela, a dança e no caso dele, as artes plásticas.



“Pendular” é essencialmente sobre relacionamentos e suas complexidades. O tema é tratado com muita naturalidade e maturidade, sem qualquer preocupação em romantizar o casal. Não há diálogos que expliquem o que eles estão pensando um do outro, o que faz com que o público dedique o máximo de percepção aos detalhes da história que é contada, exigindo assim plena atenção de seu público.

O roteiro foi inspirado na performance apresentada pela artista performática Marina Abramovic em 1980. Naquela performance, Ulay, que era namorado dela na época, e Marina estão de frente um para o outro, pressionando o arco para um lado e a flecha para o oposto. Se um dos dois deixa de fazer pressão, a flecha acabará ferindo Marina no peito. Essa performance ficou famosa por retratar como uma relação amorosa pode ferir e matar um ao outro. E foi esse tema que a diretora Júlia Murat quis trazer para sua obra. A história de um relacionamento cheio e conflitos causados por ruídos e segredos que minam a confiança um do outro.

Mas o que faz desse filme algo tão encantador é a forma como Júlia conta a história por meio da arte. As coreografias da dançarina (seu nome não é citado no filme, então a chamaremos de Ela) são uma extensão de sua vida, seus conflitos e suas alegrias. O mesmo acontece com o escultor (também sem nome citado e o chamaremos de Ele) que utiliza de sua arte para transmitir seus medos e inseguranças. Júlia não quer aqui contextualizar o casal de forma explícita e sim utilizar de elementos na composição das respectivas artes para que conheçamos e descubramos o que envolve a vida daquelas pessoas.

Há uma frase do pintor holandês Van Gogh da qual tenho um carinho muito grande, que diz o seguinte: A Arte existe para consolar aqueles que são quebrados pela vida. Em “Pendular”, tanto Ela quanto Ele buscam na arte um refúgio de consolo para os constantes conflitos entre ambos. Isso fica evidente nos gestos mais casuais, como por exemplo o fato deles dividirem os espaços do galpão com uma fita adesiva, mas aos poucos Ele começar a invadir o espaço Dela, pois sua arte exige esse espaço maior. Essa “invasão territorial” é física, mas ao mesmo tempo metafórica, afinal, Ele com seu desejo de ser pai, tenta forçar Nela o desejo de engravidar, desrespeitando seu espaço, ou seja, sua decisão de não engravidar. Esses conflitos fazem do casal que tanto se amam uma arma contra si mesmos. Uma arma que, apontada para o coração um do outro, pode causar ferimentos irreparáveis.

A direção de Júlia Murat é primorosa ao extrair o máximo de suas cenas. A diretora já havia feito isso de forma brilhante no seu filme anterior, “Histórias que Só Existem Quando Lembradas” (2011). Não há qualquer pressa em encerrá-las, permitindo, portanto, uma completa experiência contemplativa dos belos planos que a diretora compõe junto com sua diretora de fotografia Soledad Rodríguez. O ritmo cadenciado (não confunda com lentidão) pode incomodar o público mais disperso, mas é graças a essa cadência que conseguimos observar cada movimento, cada gesto e olhar dos personagens, e isso é fundamental já que o filme trabalha muito sem palavras, tal qual a performance de dança que originou o filme. Não é preciso verbalizar para que algo seja dito, e Júlia sabe usar muito bem esse conceito.

“Pendular” funciona como exercício de apreciação, tal qual uma obra de arte, o que está em total harmonia com a origem da palavra “arte” que deriva do latim arts e pode ter até três concepções que foram se complementando com o passar dos anos: (1) ofício e habilidade; (2) conhecimento, visão e contemplação; (3) e por último, expressão. Todas essas concepções estão presentes no filme. Temos o ofício e habilidade de Júlia que tem total domínio da criação de sua obra. Seu conhecimento técnico oriundo de sua experiência nos trabalhos de sua mãe, Lucia Murat, permitem que Julia experimente fazer um filme que teste e provoque seu público. Em entrevista concedida com exclusividade para o Plano-sequência, a diretora revela que trabalha com cinema desde os 15 anos de idade, e já passara por quase todos os departamentos de uma produção. Já fora estagiária de direção, assistente de direção, montadora, produtora, ou seja, Júlia tem conhecimento suficiente para criar uma obra de visão e contemplação ao mesmo tempo de expressão e contestação.

É preciso também destacar o trabalho brilhante da atriz Raquel Karro que interpreta Ela. A atriz que é coreógrafa profissional, consegue se expressar poderosamente por meio de olhares profundo e principalmente por meio dos movimentos corporais. Cada gesto da atriz carrega uma representação cheia de significados. As cenas de sexos protagonizadas por ela e seu parceiro mais parecem performances de dança com movimentos lindamente coreografados e repleto de potência. Além de serem cenas muito bem dirigidas e com a visceralidade que ela exige, em momento algum elas soam gratuitas. Talvez haja ali um exagero na quantidade de cenas considerando a equação duração do filme x ritmo, mas isso não as tornam gratuitas.

“Pendular” é uma obra de arte que não subestima o seu público. É um filme que se propõe a mostrar que a arte não é apenas a representação do que é belo. Arte precisa provocar, te fazer pensar, te tirar do lugar comum. A arte conta histórias, desafia convenções, quebra tabus, vislumbra a beleza, provoca o choque. A arte é conexão, é uma confluência de sentimentos comuns a cada um de nós que converge naquilo que somos. É o equilíbrio entre o eu, e o nós. É como disse o poeta português Fernando Pessoa: A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não tem importância. Não importa se estamos falando de música, artes cênicas, artes plásticas, dança ou cinema. A arte é o que melhor define o que realmente somos. ■

“Pendular” está em cartaz nos cinemas.