por Leandro Luz
Vencedor do prêmio da FIPRESCI (Federação Internacional de Crítica de Cinema) no Festival de Berlim, na seção Panorama, e exibido na mostra competitiva do 50º Festival de Brasília, “Pendular” é o mais recente longa-metragem dirigido por Julia Murat, diretora do também premiado “Histórias Que Só Existem Quando Lembradas” (2011).
Nesta entrevista concedida ao cinematório no dia 30 de setembro de 2017, após a exibição de “Pendular” e debate com a diretora na Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, Julia conta como foi sua passagem por diversos festivais de cinema ao redor do mundo como Berlim, Veneza e Rotterdam, discorre sobre a presença de filmes brasileiros e a importância de uma curadoria forte nesses eventos. A cineasta também reflete sobre a diferença entre dirigir o primeiro longa-metragem de ficção e as expectativas durante a produção do segundo em relação ao seu trabalho, além de relatar como a parceria de anos com Lúcia Murat, sua mãe, foi sua grande escola no universo cinematográfico.
Obs.: O áudio desta entrevista pode ser ouvido no podcast cinematório café expresso.
Como você enxerga a participação dos filmes brasileiros hoje nos maiores festivais de cinema do mundo e como foi estar em Berlim apresentando “Pendular”, seu mais recente longa-metragem?
Berlim esse ano tinham 12 filmes, entre curtas e longas, e em todas as mostras. Tinha o “Joaquim” na competição, tinham quatro filmes, se eu não me engano, no Panorama, e aí tinha também no Generation e no Forum. Pessoalmente eu acho que isso é um resultado de política pública que aconteceu nos últimos anos no Brasil. A gente teve uma política pública de cinema que começou a ser voltada um pouco mais para filmes de arte, com pensamentos de mercado internacional e passou a ter alguns fundos nacionais. Isso fez com que a gente tivesse tanta presença lá fora. Berlim não foi o único festival que isso aconteceu. Rotterdam foram 15 filmes, em Sundance teve filme, em Cannes, Locarno, Veneza… Então realmente é um reflexo dessa política pública que vem acontecendo nos últimos anos e que tememos que esteja acabando. O cinema demora pra acontecer, né? A gente hoje tá vivendo essa bonança, mas a crise tá começando a chegar e provavelmente vai ser refletida daqui a dois anos, um ano.
Com seus dois longas anteriores, e até mesmo com os curtas, você chegou a viajar para algum desses festivais? Como foi essa experiência? De forma mais pessoal mesmo, estando lá ao lado desses filmes.
Os curtas não viajaram nada. O “Dia dos Pais”, que é o meu primeiro filme, um documentário que eu fiz com o Leonardo Bittencourt, estreou no Cinéma du Réel, que é um festival de documentário muito interessante que tem no Pompidou, em Paris. Ele é muito interessante justamente porque é um festival onde você reconhece o olhar curatorial por trás dos filmes. É muito visível, e naquela época era muito porque a pessoa que estava à frente era muito curadora mesmo, no sentido de ser uma pessoa com muito desejo de colocar uma marca. Então era muito bonito de ver um grupo de filmes que você reconhecia o olhar do curador por trás. E com um pensamento de cinema muito forte. Realmente com um debate muito forte, com uma discussão muito forte sobre cinema. O “Histórias [Que Só Existem Quando Lembradas]” estreou em Veneza, e aí depois ele foi pra muitos festivais. Veneza é curioso. É um festival estranho porque a princípio, ao contrário de Cannes e Berlim, é um festival só de cinema. Agora começou a ter mercado, mas naquela época não tinha, então supostamente você está mais voltado para os filmes, mas ao mesmo tempo tem a Madonna chegando no rio, num barco… Então tem um olhar sobre o que está acontecendo ali que é muito espetacular, muito voltado para essas fotos do tapete vermelho, enfim. Foi uma primeira experiência nesse tipo de festival, e foi bem estranho. Na verdade, o “Histórias…” acabou se dando muito bem porque em Veneza a gente ganhou duas críticas muito fortes, do Hollywood Reporter e da Variety. E por causa dessas críticas, quando a gente chegou em Toronto, a gente chegou com força e aí [o filme] já foi vendido para vários lugares. Então para o filme acabou sendo muito bom ter ido pra Veneza, mas eu acho que é particular dessa história. Não necessariamente é um lugar para esse tipo de filme. E aí Berlim foi curioso porque eu já tinha ido algumas vezes. Eu tinha ido uma vez porque eu tinha montado dois filmes que estavam em Berlim. Tinha ido no Talent Campus e como, enfim, fui assistir.
Como espectadora.
Como espectadora. Por acaso eu estava na Europa nessa época e tal. Então era um festival que eu conhecia. E eu tinha uma visão muito ruim do Festival, uma visão muito de mercadão, assim. Porque o mercado de Berlim é uma coisa gigantesca. É um palácio que você tem milhões de “standzinhos” vendendo filmes de todos os lugares do mundo e a sensação que dava um pouco era que aquela venda era muito mais importante do que os filmes que estavam passando no Festival, sabe? E aí passar o filme lá me fez repensar essa visão, porque é um festival onde os debates são muito fortes. Tem uma quantidade de público impressionante, todas as sessões lotadas. A gente passou em seis sessões de 300 a 600 lugares e praticamente todas lotadas. Então é um festival que realmente, apesar de não parecer, tá muito pensando cinema.
Cannes tem muito isso também de mercado, só que talvez a coisa autoral ofusque um pouco, né?
Eu não conheço Cannes, na verdade. Eu nunca fui. Conheço dos filmes, mas eu nunca fui. Todo mundo fala que o mercado de Cannes é uma coisa gigantesca. E realmente tem essa diferença de curadoria, né? Cannes, a princípio, é um festival mais voltado para “cinema de autor”, no sentido mais clássico do termo. Berlim tem dois recortes muito fortes. Tem o recorte político, especialmente ligado ao Forum, e tem o recorte homossexual. Você tem o Teddy, que é um prêmio importante lá dentro, então você tem dois recortes que são muito fortes.
Falando um pouquinho sobre a produção especificamente do “Pendular”, a gente acompanhou agora um debate após a exibição do filme aqui na Cinemateca [do MAM] e eu vi que você comentou que a sua experiência com esse filme, do ponto de vista do financiamento, foi muito diferente do “Histórias…”. Que o “Histórias…” você conseguiu financiar lá fora e o “Pendular” você conseguiu mais aqui dentro do Brasil por conta talvez de questões de roteiro e tudo mais. Mas para além disso, quais foram as grandes diferenças em relação à produção? Menos essa coisa do financiamento e mais o modo de trabalho mesmo. O espírito do set de filmagem foi muito diferente de um filme para o outro ou você acha que foi semelhante?
Eu acho que tem várias coisas aí que modificam os dois filmes. Uma é o fato de que o primeiro é um primeiro filme. E como primeiro filme, eu tinha muita certeza do que estava fazendo e ninguém junto comigo tinha a mesma certeza. Eu fiquei muito tempo pensando no filme, mas ao mesmo tempo a equipe me olhava e era uma equipe de amigos, uma relação muito igualitária. Eram pessoas que estavam começando que nem eu. Éramos só amigos, a relação era muito direta. E era uma equipe que também não sabia se eu sabia fazer cinema, entendeu? Estava todo mundo ali se arriscando junto. No “Pendular”, o fato do “Histórias…” ter feito sucesso muda um pouco essa relação, porque mal ou bem… Primeiro é um filme que tem mais dinheiro, realmente. Por mais que seja baixo orçamento é um filme que tem muito mais dinheiro. Segundo, meus amigos já não estão mais começando, então é mais difícil montar uma equipe tão de amigos, no sentido que o “Histórias…” foi, de tanta parceria. Porque as pessoas com as quais eu tenho parceria já não estão mais começando, cada um fazendo o seu filme, enfim. Então eu acabei montando uma equipe que tinham vários amigos, foi uma equipe bastante íntima, mas também com várias pessoas que eu não conhecia originalmente, que entraram para o filme de uma maneira mais tradicional, de escolha de equipe. E aí era curioso, porque tinha a tensão de… Já era meu segundo filme. Então já me olhavam com “tá, então o ‘Histórias…’ fez sucesso.” As pessoas já apostavam no filme como se fosse um filme que faria necessariamente sucesso, que poderia ajudar eles na carreira, então tinha uma tensão no ar que eu sinto que o “Histórias…” não teve, sabe? No “Histórias…” tava todo mundo tentando e arriscando mais junto.
Entendi. Mas você acha que é uma tensão que pode ter ajudado também de alguma maneira no “Pendular” ou não?
Eu acho que o filme é reflexo de tudo que tava envolvido, né? Eu tava grávida no filme. Eu acho que também é reflexo disso, de algum lugar. Eu acho que é um reflexo de todos os processos que a gente viveu ali. Inclusive esse. Se ajudou ou não, se seria melhor de outro jeito ou não, não sei dizer. É o filme que a gente tem.
Você repete diversas parcerias do seu primeiro [filme] e ao mesmo tempo você insere umas pessoas novas ali. Talvez tenha sido por indisponibilidade de alguém ou realmente porque você queria tentar alguma coisa diferente. Acho que um grande reflexo disso é o trabalho com a diretora de fotografia, a Soledad [Rodríguez], como você teve acesso ao trabalho dela? Como foi esse contato e como você acha que a figura dela, a presença dela artisticamente reflete no filme? Porque eu percebo que é um filme muito claro. Eu não sei se as outras pessoas têm essa percepção, mas eu acho que o filme inteiro… Óbvio, tem cenas muito específicas com momentos bem soturnos, mas eu acho o filme muito claro, muito aberto para um tema que é tão fechado, para um tema que é tão introspectivo. E eu acho isso bom, porque é tão difícil assistir a filmes que tem uma proposta de discussão tão densa, tão introspectiva, que ao mesmo tempo se proponham a ter uma iluminação tão aberta. De que maneira então isso foi uma colaboração dela?
A Soledad entra no filme porque o Lucio Bonelli, quem tinha feito meu primeiro filme, não pode fazer. O Lucio também é argentino, também veio a partir da coprodução com a Argentina. E aí o Lucio indica a Soledad. Eu conversei naquele momento com outros fotógrafos, mas o Lucio foi muito insistente na indicação da Soledad. Ele falou que a gente ia se dar muito bem e eu acho que ele tinha muita razão nessa escolha, sabe? Então ela entra a partir da indicação do Lucio, que era uma pessoa que eu confiava muito. E quando ela chega, eu tinha uma preocupação muito grande porque no “Histórias…” eu senti que eu não dei espaço pro Lucio participar da decupagem como eu acho que seria o ideal. Por questões de produção ele veio só uma semana, muito antes. A gente não definiu a decupagem naquele momento, então acabou que eu a defini toda com o Leo Bittencourt. Ele foi diretor assistente no “Histórias…” junto com a Maria Clara [Escobar]. Então o Lucio ficou um pouco vendido quando ele chegou. Ele tem uma luz impressionante, de uma precisão belíssima. E na luz eu não interferi em nada, mas ao mesmo tempo, em relação a decupagem, ele acabou participando pouco do processo. E aí quando chegou agora pra fazer o “Pendular”, eu senti que eu tinha que abrir mais a decupagem e trazer mais junto a Soledad. Teve de novo os problemas de produção. Ela só veio dez dias antes e então não dava muito, mas ao mesmo tempo eu só comecei a pensar na decupagem junto com ela. O que a gente fez foi iniciar o processo de pensamento de decupagem junto. Aí ela foi embora e eu terminei junto com a Helena, que era a assistente de direção. Então, por mais que eu tenha decupado grande parte do filme sem a Soledad, a conceitualização da decupagem aconteceu com ela.
E a locação vocês já tinham?
Quando a Soledad veio a locação já tava toda fechada. Toda. 100%. A gente tinha dúvida se ia fazer no banheiro que a gente fez, que é o meu banheiro, porque a gente a princípio queria uma coisa um pouco mais pobre. Essa era a dúvida, mas de qualquer maneira ela visitou todos os banheiros que a gente tinha como possibilidade. Então realmente pensamos a decupagem já com as locações. O que a gente não tinha muito ainda eram os ensaios com os atores, quando a Soledad chegou a primeira vez, né? Então essa decupagem primeira que a gente conceitualizou tinha um pouquinho a ver com os ensaios com os atores, mas não totalmente. Então quando ela foi embora eu continuei ensaiando muito com os atores, defini todas as cenas, as ações, as andanças no espaço e a partir daí eu fechei de fato a decupagem com a Helena.
Pensando novamente no “Pendular” e no “Histórias…”, acho que tem um elemento ali que se repete de alguma maneira, mesmo que de forma um pouco diferente, que é a presença de uma música muito específica nos dois filmes. No “Histórias…” a gente tem Franz Ferdinand, com “Take Me Out”, num momento muito… Quase num ponto de virada, eu acho, do filme, e agora no “Pendular” a gente tem “Love Will Tears Us Apart” do Joy Division, também num momento de expressão muito intenso da protagonista. Fiquei curioso pra saber de que maneira essas músicas chegam a você ou partem de você. No roteiro ou onde é que elas entram? Em que momento?
No “Histórias…” eu lembro exatamente do dia que eu escrevi a cena. Eu estava em Madri, fazendo esse laboratório de roteiro na Fundação Carolina, e eu tinha ido dormir. Acordei de madrugada, sentei e comecei a escrever a cena. Naquele momento eu não sabia qual era a música que ela dançava, mas sabia que ela tinha que ter uma explosão corporal, que era o jeito dela jogar pra fora o que ela tava vivendo. E aí a gente foi filmar com a Lisa [Fávero], que é a atriz, e eu pedi pra ela escolher uma música. Ela escolheu… Não foi essa, ela escolheu outra música.
Lembra qual?
Não, mas tinha a ver com Franz Ferdinand. Se eu não me engano era outra música do Franz, não tenho certeza. Mas aí eu acabei escolhendo essa porque eu senti que tinha muito a ver com a potência que ela tava vivendo e tinha muito a ver comigo, assim. Era uma música que eu gostava muito. Já no “Pendular”, quando eu escrevi a cena, de novo, da personagem jogando pra fora corporalmente, e no roteiro não tinha nada a ver com o que ficou no filme, no sentido de que era outro momento do filme. Era toda uma historinha que caiu, que a mãe dela morria e aí aquela blusa que ela usa, aquela blusa apertada, na verdade era a única herança dela. Era sobra da mãe, era a única herança. Então era o jeito dela de se desfazer da herança, da memória da mãe, enfim. Não tem nada a ver com o que de fato a cena ficou no filme. Mas o que aconteceu foi que eu escrevi essa cena e falei: “Putz, de novo? Faz sentido usar duas vezes a mesma cena?” Quase tirei do roteiro por causa disso, porque era uma repetição do “Histórias…” E aí fiquei depois achando que era bobeira tirar também só porque era uma repetição. Acabei resolvendo deixar. E aí eu mostrei pra Raquel algumas cenas que pra mim eram reveladoras, de onde a gente tava saindo, que era um filme da Claire Denis e um outro filme que eu não me lembro qual era…
Então o “Trouble Every Day” não tava ali à toa… (risos).
Não, mas na verdade a ideia dessa cena era a partir do… Qual o nome daquele filme? É um dos primeiros filmes dela na África. Também esqueci. Mas enfim, a última cena do filme, que ele tá dançando na discoteca. Foi a partir daquela cena que eu queria muito trabalhar…
Qual o nome dele? Ele é maravilhoso.
Ele é maravilhoso.
Denis Lavant!
Denis Lavant! E aí a Raquel, quando eu mostrei pra ela essa cena, falou “cara, tem um outro filme que ele faz também uma coisa meio parecida, e que é ele correndo na rua.”
Ah, do Leos Carax.
Do Leos Carax.
“Sangue Ruim”, talvez?
É, o “Sangue Ruim”. E aí ela trouxe essa cena e a gente ficou estudando muito o jeito que ele compunha essas duas cenas. E aí a gente começou a trabalhar corporalmente a Raquel a partir dessas composições dele e o que aconteceu foi que eu pedi pra ela trazer uma música que fosse emotiva pra ela. E aí ela trouxe uma música que era emotiva pra ela por motivo “x”, que não tinha nada a ver com o filme, e a gente filmou. E há de se dizer que era uma música que falava pra ela da separação, só que estaria colocada na ideia da morte da mãe, né?
Sim, que é a ideia do roteiro.
Que era a ideia do roteiro. Só que aí de repente na montagem ele vira sobre separação. Então o que era uma leitura de uma música que não tinha uma conexão direta, passou a ser reiterativa, entende? E naquele momento eu achava que eu não ia usar a música, que eu ia botar uma outra em cima, só que era tão potente o trabalho do corpo dela em cima dessa música que ficou muito difícil trocar.
Mas que bom que não trocou (risos). É porque se você analisa num primeiro momento… Quando os cineastas usam a música com essa função acaba diluindo um pouco mesmo, mas no caso do “Pendular” eu acho que não. Por mais que a música tenha um título e uma letra que estejam muito dizendo o que tá acontecendo ali… Engraçado, quando eu assisti, eu pensei isso e falei: “Pô, mas será que é uma música óbvia?” Mas acho que a potencialidade da música e a potência corporal da atriz justificam tudo. E melhor ainda saber que nem era o caso, né? Era uma outra história. Então se confirma um pouco essa sua escolha de manter isso no filme. Que bom.
Que bom. A Raquel fica histérica: “Pô, mas a gente não escolheu pra isso, como assim? Ficou uma coisa totalmente reiterativa.” A gente realmente pensou em tirar, especialmente quando a gente mudou de lugar, mas eu acho que a potência do corpo perdia muito. Toda vez que a gente trocava a música não fazia sentido, sabe?
Pensando no trabalho da Lúcia [Murat], e pensando também em retrospecto a sua carreira, você também trabalhou em algumas obras da sua mãe…
Eu fui assistente de direção do “Brava Gente [Brasileira]”. Eu fui estagiária de direção do “Doces Poderes” quando tinha 15, 16. No “Quase [Dois Irmãos]” eu fiz a montagem e fui assistente de câmera. Aí depois no “[Uma] Longa Viagem” eu fiz projeção dos vídeos. Os vídeos que são projetados em cima do Caio [Blat] eu que escolhi, editei e tal. No filme chamado “Olhar Estrangeiro”, que é um documentário, eu editei. E aí depois no “Memória [Que Me Contam]” eu só dei uma ajudada na produção. E a partir daí eu comecei a fazer meus filmes e ela começou a fazer os dela. Obviamente eu leio todos os roteiros dela, ela lê todos os meus roteiros. Eu comento na montagem, ela comenta na montagem. Tem uma parceria natural, mas paramos de trabalhar juntas.
Entendi. Sobre isso especificamente, queria entender de que maneira então…. Eu ia dizer de que maneira o trabalho da Lúcia influencia o seu, mas acho que menos o trabalho, a obra em si, e mais o modo de trabalhar, talvez seja uma coisa que você tenha mais próximo, assim, por ter participado de alguns filmes dela. De que maneira esse modo de trabalhar influencia no seu? E como você também enxerga, de um ponto de vista mais amplo, assim, o trabalho da Lúcia na cinematografia brasileira mesmo? Como você enxerga a obra dela?
Sobre essa segunda é difícil de responder sendo filha. Devo confessar. É difícil você saber o que sua mãe produz, né? No sentido amplo do termo, assim.
Ou o que isso te afeta de maneira mais pessoal? Talvez seja melhor de responder.
É, não sei, porque bate por milhões de aspectos, sabe? Vai desde… Que nem ela assistindo… Tipo, ela lendo o roteiro do “Pendular”, ela fica histérica: “Você não tem que fazer esse filme!” Porque batem preocupações, sabe? Tipo, eu fico volta e meia preocupada: “Pô, será que ela tá até hoje voltada pra questão da tortura e não consegue sair disso?” E é uma preocupação de filha, não tem nada a ver com a obra, entendeu? Acho que a obra tem uma consistência tremenda, muito maior do que eu jamais seria capaz de ter, sabe? Então é estranho, assim, porque mistura sentimentos que é difícil você olhar como espectadora do processo. Mas tentando responder à primeira pergunta, eu acho que o que a minha mãe me permitiu foi trabalhar em todas as áreas. Eu tive esse privilégio que poucas pessoas tiveram de ter podido trabalhar em diversas áreas do Cinema porque eu sou filha de uma diretora. E uma diretora com a generosidade que ela tem. Então é isso, eu fui assistente de direção, assistente de produção, assistente de montagem, eu fui montadora, eu fui… Eu só não trabalhei na área do som. É a única área no cinema que eu nunca trabalhei.
Tem interesse?
Eu amo fazer, assim. Nos meus filmes eu fico viciada na coisa da mixagem e tal. Eu tenho um bom ouvido, mas não tenho nenhum conhecimento técnico. E é engraçado, porque eu adoro me meter na música do Lucas [Marcier], que é quem faz as músicas dos meus filmes. Eu adoro me meter na música dele e ele super deixa eu me meter, mas é muito engraçado, porque eu não tenho nenhum conhecimento de música, eu sou péssima, eu sou desafinada, eu não entendo, eu não consigo entender tonicidade. Tipo, eu realmente não tenho nenhum controle técnico da coisa, e nem estético, mas a gente tem uma parceria que por algum motivo funciona. Eu fico me metendo e ele vai deixando, a gente vai jogando junto, assim. É muito gostoso. E eu acho que acaba ajudando muito meus filmes porque as músicas acabam entrando muito do ponto de vista dramatúrgico, por essa parceria que a gente tem. Mas enfim, eu acho que a minha mãe me permitiu isso. Ela permitiu que eu conseguisse trabalhar em todas as áreas do cinema e isso me ensinou muito sobre cinema em tudo. Inclusive, sei lá, no sentido de correr riscos, por exemplo, de fazer uma festa de fato botando música, botando todo mundo bêbado e lidando com isso. Sabendo que eu tava produzindo uma coisa tecnicamente muito errada, mas que ao mesmo tempo ia ter uma vida. O fato de eu trabalhar no cinema desde os 15 anos de idade, portanto há mais tempo do que sem trabalhar no cinema, me permitiu ter um conhecimento técnico que me ajuda a desmontar as técnicas quando me soam boas fazê-lo, sabe? Então tem uma coisa meio de usar a técnica a seu favor e não contra você.