FESTIVAL DO RIO 2017: “A Forma da Água”, “Me Chame Pelo Seu Nome”, “Karingana” e “Rastros”

A 19ª edição do Festival do Rio apresenta ao público mais de 250 títulos distribuídos em diversas mostras ao longo dos seus 11 dias. Criatividade e pluralidade são o principal objetivo e norte para o recorte curatorial, algo que podemos notar na seleção de filmes aguardados, como os vencedores do Leão de Ouro de Veneza e do Urso de Ouro de Berlim, “A Forma da Água” e “Corpo e Alma”, respectivamente, além de produções de diretores veteranos e iniciantes que chegam ao Rio de Janeiro oriundos de países como Portugal, Níger, Itália, Japão, Suécia, México, entre outros.

A mostra de maior prestígio, como de costume, é a Première Brasil, que em 2017 traz 75 títulos brasileiros, dentre curtas e longas-metragens, distribuídos nas categorias Hors Concours, Novos Rumos e Competitiva, esta responsável por conceder aos vencedores o Troféu Redentor, eleito por voto popular e pelo júri oficial composto por expoentes da cinematografia nacional e internacional.



O cinematório está acompanhando o Festival e cobrirá todos os dias do evento, oferecendo ao leitor diários com relatos sobre os filmes assistidos por Laura Batitucci e Leandro Luz. Você poderá acompanhar a cobertura pelo site, através dos textos publicados, e também pelas redes sociais (YouTube, Twitter e Instagram).

Abaixo constam os filmes assistidos nos dois primeiros dias e seus respectivos textos.

 

A Forma da Água The Shape of Water dir.: Guillermo del Toro

Foto: Kerry Hayes. © 2017 Twentieth Century Fox Film Corporation

Be water, my friend!”. O novo longa-metragem de Guillermo del Toro toma emprestado, conscientemente ou não, as famosas palavras de Bruce Lee para, assim como o popular artista e instrutor de artes marciais, responder sobre como nos devemos portar diante da vida e do mundo. O diretor mexicano, responsável por obras como “O Labirinto do Fauno”, “Círculo de Fogo” e o mais recente “A Colina Escarlate”, investe novamente no universo do cinema fantástico para reimaginar um dos “filmes de monstro” mais cultuados do Cinema, “O Monstro da Lagoa Negra”, dirigido por Jack Arnold para a Universal em 1954. O mais cativante em “A Forma da Água” é a habilidade demonstrada por del Toro em construir uma narrativa que abraça as convenções do gênero, mas que permanece livre de amarras ao mesclar romance, horror, comédia e musical de maneira fluida através de personagens bem escritos e desenvolvidos ao longo de seus 123 minutos. A música marcante de Alexandre Desplat é certamente um dos elementos fundamentais para o sucesso desta empreitada e nos acompanha desde a sequência de abertura – que apesar de ser o meu momento favorito jamais ofusca o restante da obra – até o último minuto, num mergulho fabuloso dentro d’água, nos remetendo novamente ao longa de 1954 (com suas inovadoras e belíssimas tomadas subaquáticas). Sally Hawkins interpreta Eliza Esposito, integrante da equipe de limpeza de um laboratório de pesquisa do governo estadunidense que acaba de capturar e trazer dos confins da Amazônia uma criatura-anfíbio aparentemente perigosa e agressiva, sobretudo às vistas do odioso Strickland (interpretado pelo sempre ótimo Michael Shannon). A fábula, a essa altura, ainda ganha nuances de espionagem ao estabelecer uma trama no contexto da Guerra Fria, sem jamais soar desinteressante ou descolado de sua proposta inicial, conseguindo, ainda, fazer alguns comentários sociais e políticos pertinentes não apenas para a época em que a trama se passa. Por mais que del Toro lance mão de cenas líricas e singelas como as protagonizadas por Hawkins em seus momentos de musical e outras bastante cômicas envolvendo Zelda, interpretada por Octavia Spencer, a violência pungente se faz presente, sobretudo quando Strickland está em tela, seja ao praticamente estuprar sua cônjuge, intimidar um casal ao arrancar abruptamente dois de seus próprios dedos (que já haviam sido arrancados anteriormente pela criatura e cirurgicamente colocados no lugar) ou mesmo movendo um personagem de um lugar a outro de uma maneira tão grotesca que evitarei descrever aqui para que o impacto da ação não se perca quando forem assistir. “A Forma da Água” é um dos projetos mais ambiciosos de seu diretor e certamente um dos mais bem sucedidos – e aqui não me refiro apenas ao prêmio máximo conquistado em Veneza, mas principalmente como ele consegue orquestrar com tanto esmero os mais variados elementos presentes aqui e ao mesmo tempo homenagear o Cinema de maneira tão elegante e sincera. (Leandro Luz)

 

Me Chame pelo Seu Nome | Call Me by Your Name dir.: Luca Guadagnino

Foto: Divulgação

Para Elio (Timothée Chalamet), um verão é o suficiente para que Oliver (Armie Hammer), “o usurpador”, se transforme na grande paixão de sua vida. Ambientado “em algum lugar no norte da Itália”, como as legendas logo nos informam, “Me Chame pelo Seu Nome” consegue transmitir uma infinidade de sensações através dos desejos e inseguranças de seu protagonista adolescente, num clássico arco dramático envolvendo um bonito encontro entre duas pessoas que se descobrem apaixonadas uma pela outra. A família de Elio passa as férias de verão num lugar que se me fosse dito paraíso, acreditaria piamente sem nem ao menos duvidar. A mansão bem iluminada e aconchegante, a ampla mesa de jantar no jardim, as árvores ao redor da construção, as piscinas naturais e o clima estupidamente sedutor da região transportam os personagens para uma espécie de universo deslocado do tempo e espaço, abdicando de intervenções externas (à exceção do universo pop característico da década de 1980 – a camiseta com estampa da banda Talking Heads não me deixa mentir) para que nos concentremos na psicologia de cada um. A chegada de Oliver no verão de 1983 muda sutilmente a rotina da família e dos amigos que circulam pelo local, impactando Elio sobremaneira. O italiano Luca Guadagnino (“Um Mergulho no Passado”, de 2015, e responsável pelo remake de “Suspiria”, planejado para o ano que vem) executa com personalidade, a partir do roteiro de James Ivory, por sua vez baseado no romance homônimo de André Aciman, planos que parecem sempre lidar com a dualidade entre aqueles corpos masculinos – os músculos e a fisionomia atlética do recém-chegado, o torso magricela e a as pernas franzinas do adolescente; o calção de banho pendurado na banheira, as cuecas lavadas pela empregada; o andar de bicicleta lado a lado, as inúmeras refeições à mesa. “Porque era ele, porque era eu”, o filme reitera sem muita necessidade, mas as frases feitas não parecem incomodar o diretor, assim como não o exasperam as sequências longas demais em alguns momentos. Guadagnino parece curtir os excessos. Melhor, parece busca-los – e é gritante a maneira como ele insiste em interferir na imagem, ao lado de seu diretor de fotografia (Sayombhu Mukdeeprom, também responsável por obras como “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”, de Apichatpong Weerasethakul, e a trilogia “As Mil e uma Noites”, de Miguel Gomes), ao inserir, por exemplo, filtros coloridos e imagens com efeito de negativo invertido numa determinada sequência de sonho/delírio do protagonista. Nada disso, entretanto, tira a força da narrativa construída aqui, e é curioso notar como o trabalho de câmera é extremamente bem elaborado sem soar exibicionista, como fica claro na cena em que Elio e Oliver conversam ao redor de um monumento da Primeira Guerra Mundial e somos conduzidos pelo flerte dos personagens num plano-sequência sutil e elegante. Nós escolhemos como decepcionamos uns aos outros? Escolhemos como decepcionamos a nós mesmos ao longo da vida? O longo diálogo entre Elio (ou Oliver, a essa altura do campeonato já não há diferença – “porque era ele, porque era eu”, novamente) e seu pai (Michael Stuhlbarg) nos responde, ou pelo menos nos permite refletir sobre a pergunta. É uma cena difícil, e em termos de roteiro e montagem considero bastante problemática, mas o carisma dos atores e a extrema sensibilidade do diálogo me conquistaram. É o prenúncio do inverno, portanto. O verão e o filme chegaram ao fim. (Leandro Luz)

 

Karingana – Licença para Contar | dir.: Mônica Monteiro

Foto: Divulgação

“A língua é uma espécie de brinquedo, e trouxemos a este filme alguns dos brincantes da língua portuguesa” (fala de José Eduardo Agualusa, presente na estreia de “Karingana” no Cine Odeon)

A língua portuguesa e como ela navegou, e navega, por entre Angola, Brasil, Moçambique, Portugal. Esse é o tema de “Karingana – Licença para Contar”, documentário de Mônica Medeiros sobre a visita de Maria Bethânia a Moçambique e sua performance no país, realizada em conjunto com Mia Couto e José Eduardo Agualusa. O filme alterna entre gravações dessa apresentação, em que Bethânia lê e canta trechos das diversas literaturas dos países lusófonos; entrevistas com os principais expoentes da escrita africana em português; e planos que nos mostram um pouco da cultura e das paisagens moçambicanos. O que se destaca aqui são as reflexões sobre a natureza da língua portuguesa e as semelhanças e dessemelhanças presentes nas ramificações e misturas sofridas por ela nos diversos locais onde floresceu. Apesar de suas qualidades técnicas não impressionarem, sendo bastante convencional e pouco inspirado visualmente, o documentário é um projeto, em si, muito interessante por demonstrar a relação que temos com o português pelo ponto de vista daqueles que se utilizam dele como instrumento (e material) de trabalho. A performance de Bethânia ganha relevância por valorizar a cultura oral, ainda bem presente nos países africanos, na contramão das tendências atuais de digitalização e impessoalidade. Faltou apenas que o filme transparecesse uma maior proximidade dos realizadores ao país moçambicano e às suas representações em tela, que sempre pareciam vir de um olhar estrangeiro, baseado nas expressões curiosas de Bethânia diante daquela cultura diferente. Mesmo a presença da cantora moçambicana Mingas no filme (e também como convidada da sessão do Festival) e de seu conterrâneo Mia Couto não foi o suficiente para apagar a impressão de que o país foi usado meramente como locação para o documentário, que não se interessa em aprofundar nossa relação com o lugar. (Laura Batitucci)

 

Rastros | Pokot dir.: Agnieszka Holland

Foto: Divulgação

Poucos filmes são capazes de alternar entre atmosferas tão diversas quanto “Rastros”, novo de Agnieszka Holland, experiente diretora polonesa. Duszejko (Agnieszka Mandat-Grabka) é uma senhora que vive isolada nas montanhas da Polônia quando suas duas cachorras desaparecem e se inicia uma série de crimes estranhos próximos à sua casa – vários caçadores famosos da região, subitamente, aparecem mortos. Se a premissa resultaria em um exemplar exímio de um filme de terror nas mãos de outros roteiristas e diretores, com Holland ele se distancia mais e mais disso à medida que se desenvolve, evitando se enquadrar em um ou outro gênero. Somos levados a conhecer intimamente a personagem de Duszejko, uma ex-engenheira, que, além de manter seu hobbie em astrologia, é professora de inglês para crianças e demonstra o mesmo afeto gentil a animais e a pessoas (menos àquelas que se negam a perceber a crueldade das tradições de caça que marcam a região). Acompanhamos suas tentativas de convencer as autoridades de que a caça ilegal deveria ser contida: sua atitude contestadora é tida como delirante pelos policiais e outros membros da comunidade. Porém, o filme constrói essa personalidade de forma tão cativante que nos é quase impossível imaginá-la como apenas uma neurótica ativista dos direitos dos animais: por meio de cenas sensíveis, vemos que ela tem cuidado por tudo e por todos, e não é difícil que nos revoltemos ao ver animais dilacerados, machucados e mortos, dispostos sempre das maneiras mais chocantes pelos planos de Holland, que quase os humanizam. A sua direção, aliás, é o maior mérito do filme: seus planos muito gerais, que nos mostram a imensidão e beleza da natureza local, são contrastados com planos muito fechados de detalhes dos rostos daqueles que dizem a Duszejko como se comportar e o que deve fazer, restringindo sua liberdade de pensamento e de ação. Às vezes, porém, o filme parece se perder: algumas tramas são iniciadas e pouco desenvolvidas, e, ao final, não podemos, como espectadores, extrair do filme uma mensagem clara sobre os temas que aborda. Sua originalidade e capacidade de surpreender, no entanto, são únicas e valiosas, e é interessante ter este filme como inspiração de subversão e extensão de elementos de gênero. (Laura Batitucci)