FESTIVAL DO RIO 2017: “O Animal Cordial”, “Gabriel e a Montanha”, “Bom Comportamento” e mais

A nossa cobertura da 19ª edição do Festival do Rio é feita por Laura Batitucci e Leandro Luz. Acompanhe também pelas redes sociais: Twitter e Instagram.

120 Batimentos por Minuto | 120 Battements par Minute dir.: Robin Campillo



Foto: Divulgação

Quando uma pessoa apresenta um distúrbio do batimento ou ritmo cardíaco levando o coração a bater mais rápido que o habitual, geralmente ao ultrapassar os 100 batimentos por minuto, utilizamos o termo médico taquicardia. Sob essa alta frequência cardíaca, o coração não é capaz de bombear efetivamente o sangue rico em oxigênio para o corpo. O vencedor de quatro importantes prêmios no Festival de Cannes deste ano transforma em ficção o cotidiano e as ações de um grupo internacional de combate ao descaso governamental frente à epidemia da AIDS que assustou o planeta nas décadas de 1980 e 1990, o ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power). A trama se passa em Paris e o diretor marroquino Robin Campillo traduz com o próprio título o norte estético do longa-metragem. “120 Batimentos por Minuto” possui um trabalho de montagem complexo e controverso: por mais que ofereça ao espectador uma eficaz e inteligente divisão do filme em duas partes muito bem definidas, com um controle rígido e particular de ritmo em cada uma delas, é inegável como o filme parece se alongar demais. Talvez o grande problema resida no apego de Capillo ao seu próprio roteiro (escrito em parceria com Philippe Mangeot), o deixando com dificuldades para cortar algumas passagens a priori impactantes pelas quais os personagens percorrem ao longo dos 143 minutos de duração. Enquanto a primeira parte é ágil e dinâmica, a segunda se opõe a esta concepção, apresentando momentos mais cadenciados e introspectivos, mais conectados ao teor dramático mesmo da história. “Estejam cientes de que vocês, portadores do vírus ou não, serão encarados como doentes aos olhos da sociedade”, diz um dos veteranos para os quatro voluntários recém-chegados. Entre eles está Nathan (Arnaud Valois), que escuta com atenção todas as indicações e regras minuciosas do grupo. Logo ele é apresentado ao radical Sean (Nahuel Pérez Biscayart) e imediatamente começa a admirá-lo, configurando, portanto, o núcleo e arco dramático principais. A morte é uma sombra que permeia todo o filme, mas é apenas na segunda metade que efetivamente a enxergamos materializada. A transformação de Sean se dá aos olhos do espectador, sem jamais chamar atenção demais para si ou soar apelativa. Curiosamente a ideia de uma distopia futurista sobre uma nova epidemia de AIDS não saía da minha cabeça ao longo de toda a projeção (não me perguntem o motivo), e talvez por isso o caráter realista e austero do filme tenha me provocado mais uma reação fria de ter assistido a um bom filme do que uma obra de arte provocante e original. No final das contas, o filme cumpre o que se propõe: compor um retrato do desespero e da luta de uma geração diante de algo deveras assustador. Há um didatismo preservado em diversas ocasiões ao tentar evidenciar os problemas pelos quais aqueles personagens convivem todos os dias, mas isso é compensado pela sensibilidade geral dos realizadores, sobretudo no cuidado do trabalho de som, sempre muito interessado em conferir um caráter subjetivo aos planos. Se a imagem mais marcante de “120 Batimentos por Minuto” reside num rio Sena tomado por um vermelho sangue opressor, as sequência posterior a este instante ganha uma força que jamais teria sozinha, e só desta maneira somos capazes de transformar toda a taquicardia presente desde o primeiro minuto de filme na calmaria e reflexão necessárias para o entendimento do que acabamos de vivenciar. (Leandro Luz)

O Animal Cordial | dir.: Gabriela Amaral Almeida

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Somos animais políticos, e, portanto, cordiais. Em nossa animalidade, cabem violências extremas e opressões impiedosas, mas insistimos em viver em sociedade, mesmo que o resultado disso seja, frequentemente, um banho de sangue. No mundo concebido por Gabriela Amaral Almeida (um pequeno restaurante de elite e seus funcionários, clientes e dono), essa ideia é levada até o limite, de forma sutilmente gradativa: ao serem colocados sob uma ameaça repentina e externa (neste caso, um assalto), como as pessoas reagem e o que elas podem se tornar? É quase insuportável ao espectador observar tudo que é tão velado (os preconceitos de classe, gênero e orientação sexual, por exemplo) não só se revelar como se potencializar e se transubstanciar em fisicalidade, em dor, vômito, sangue, urina. Quase insuportável, porém – e com isso percebemos, boquiabertos, que somos sim capazes, assim como Sara (Luciana Paes), de presenciar, e, ainda que com um fundo de culpa, até mesmo sentir prazer com tudo aquilo. Não atrapalha o fato de que o filme é incrivelmente bem construído como obra audiovisual – desde a fotografia, que se banha de vermelho à medida em que os personagens e o próprio cenário se cobrem de sangue; até a trilha sonora, capaz de gerar tensão tanto em seus momentos diegéticos (há um aparelho de som no restaurante, muitas vezes ligado ou desligado repentinamente) quanto nos não-diegéticos. A atuação de todo o elenco é arrebatadora, e, para mencionar apenas dois exemplos, há toda a caracterização corporal que Murilo Benício emprega a Inácio; e o monólogo inspiradíssimo do personagem Djair (Irandhir Santos, que alçou os primeiros lugares do meu ranking pessoal de atores favoritos). Vim me reconectando apenas recentemente ao cinema que se define como terror ou horror, e este exemplar me trouxe vontade de ver tudo aquilo que perdi ao ignorar esse gênero por alguns anos. Há, como o que imagino haver nos melhores terrores, a discussão de temas políticos e psicológicos, imbricados e inseparáveis, na viagem bizarra e perturbadora de “O Animal Cordial”. (Laura Batitucci)

Gabriel e a Montanha | dir.: Fellipe Barbosa

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“Gabriel e a Montanha” foi apresentado pela diretora do Festival do Rio como um filme que “já chega grande”, e de fato as expectativas eram altas para este longa. Premiado pela Semana da Crítica de Cannes, foi realizado por Fellipe Barbosa em homenagem a seu amigo Gabriel, que morreu no monte Mulanje, no Maláui, ao final de uma viagem por quatro países da África. Para retratar os últimos 70 dias da vida do amigo, Fellipe embarcou em uma viagem que pretendia encontrar exatamente os locais por onde Gabriel passou e as pessoas com quem conviveu, e, com a ajuda dos atores João Pedro Zappa, que retrata o protagonista, e Carolina Abras, que interpreta Cristina, sua namorada, recria alguns momentos-chave dessa jornada. “Gabriel e a Montanha” é um filme difícil: muito provavelmente foi um filme difícil de realizar, devido a toda a carga emocional; mas é também um filme difícil de julgar, visto a força da homenagem e do carinho presente em todas os seus aspectos. Os reencontros dos personagens reais com Gabriel, mesmo que ali apenas representados por um ator, são a maior força do filme: todos parecem estar encantados em participar daquele projeto, e a atuação parece surgir de forma natural. Apesar de todo esse respeito à figura do protagonista, o filme reconhece seus defeitos e expõe os seus privilégios (e, de quebra, acaba expondo também a falta de noção de Gabriel sobre estes mesmos privilégios), criando assim um personagem que abriga complexidades e contradições. Porém, devido à postura do filme de evitar julgar seu protagonista, também acabamos sem uma mensagem clara quanto ao valor daquelas atitudes ou daquela forma de ver a vida. O joie-de-vivre e um olhar menos colonizador sobre os lugares que visitamos estão no filme, mas em nenhum momento há um questionamento se o que Gabriel está fazendo é verdadeiro ou socialmente relevante. Nesse sentido, o filme se aproxima tematicamente de “Na Natureza Selvagem”, mas com um protagonista muito melhor construído e personagens coadjuvantes que têm funções reais em sua vida. O sentimento que fica é que eu gostaria de ter feito essa viagem juntamente aos realizadores, pois o processo de criação se mostra muito importante na obra final. (Laura Batitucci)

Como é Cruel Viver Assim | dir.: Julia Rezende

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Apesar do título, digamos, depressivo, “Como é Cruel Viver Assim” é uma comédia. Pensando bem, não há contradição aí: as melhores comédias, afinal, são aquelas capazes de rir de nossas vidas medíocres e da crueldade que é viver no mundo em que vivemos. Este filme, de Julia Rezende e Marcelo Valle, é uma dessas comédias, que, mesmo abraçando alguns estereótipos do gênero, traz personagens cativantes e multifacetados, nunca entediantes. Temos no centro um casal, Clívia (Fabíula Nascimento) e Vladmir (Marcelo Valle). Assolados pela crise financeira, eles planejam o sequestro de um ex-patrão de Regina (Débora Lamm), que se junta a eles e a Primo (Silvio Guindane) nessa missão. O sequestro é menos sobre dinheiro do que sobre status social e demonstrações de força e de poder, e vamos acompanhando a dinâmica do quarteto enquanto eles tentam descobrir como se sequestra alguém (são todos incorrigivelmente novatos na área do crime). Baseado em uma peça estrelada por Marcelo Valle, o filme consegue sair um pouco da sua inspiração teatral ao diferir as locações e incluir algumas cenas mais agitadas de ação, porém, o humor ainda é completamente baseado em diálogos e conflitos entre os personagens. Apesar de alguns momentos em que o diálogo redundantemente repete aquilo que já foi mostrado, a construção dos personagens é tão bem feita que esse fator não atrapalha muito a experiência (veja, por exemplo, como a personagem Clívia demonstra sua inocência ao reagir de forma exagerada a fatos relativamente mundanos da realidade, como a deficiência de uma mulher sem um braço, que ela nem mesmo conhece, ou a morte já há muito passada de um jogador de futebol). Num tempo em que sabemos cada vez mais que não somos nada, nunca seremos nada e não podemos querer ser nada, “Como é Cruel Viver Assim” reflete sobre nossos vazios e nossas tentativas de sucesso, mesmo que por meios escusos, e sua conclusão amarra perfeitamente a ideia de que tudo que ousamos conseguir ou deixar de conseguir é por pura sorte ou azar, ao melhor estilo niilista. (Laura Batitucci)

O Que Te Faz Mais Forte | Stronger dir.: David Gordon Green

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“O que te faz mais forte” é um filme americano por excelência – e digo isso, infelizmente, no pior dos sentidos: no sentido da repetição de fórmulas que dominam o cinema hegemônico do país há tempos, com direito a estereótipos e clichês que estamos cansados de ver em tela. Jake Gyllenhaal é Jeff Bauman, um jovem que perdeu as duas pernas no atentado à maratona de Boston, em 2013. O filme segue sua trajetória de superação – acompanhado por sua namorada Erin (Tatiana Maslany, de Orphan Black) e por sua família, Jeff passa por momentos de depressão e frustração, e é marcado pela fama de sobrevivente e de símbolo do “Boston Strong”, movimento de solidariedade da cidade de Boston após o ataque terrorista. Algumas ideias trazidas ao filme poderiam render uma discussão interessante: a exploração midiática da vida pessoal dos sobreviventes, ou o trauma de quem viu tudo de perto. Mas aqui essas ideias são iniciadas, só que nunca exaustivamente trabalhadas. Os realizadores preferem focar na trajetória de superação do jovem, em um arco que ele se torna um alcoólatra, é imprudente com a própria vida e maltrata a namorada e a mãe, mas, subitamente, quase que por um passe de mágica, supera tudo isso, aceita a idolatria nacional e se transforma em um “adulto”. Além dessa mudança ser mal construída e inverossímil, o filme é pontuado por comentários no mínimo suspeitos de personagens que insistem em dizer que Jeff deve se recuperar e provar que os terroristas não “venceram”. Se no começo eu acreditei que o filme pudesse estar ironizando esse tipo de ideia, ao final surge uma figura com um monólogo que, pela forma que o diretor o constrói, deveria ser emocionante, mas na prática só exalta a cultura militarista e midiática americana e o sentimento revanchista daqueles que não parecem entender a complexidade envolvida em um ataque terrorista. Nada inspirado também na direção, que é convencionalíssima, “O que te faz mais forte” é mais do mesmo: um filme que tenta simplificar assuntos extremamente difíceis ao jogá-los na caixinha enlatada da história de superação hollywoodiana. (Laura Batitucci)

Bom Comportamento | Good Time dir.: Benny Safdie e Josh Safdie

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O novo filme dos irmãos Safdie me remeteu à experiência que tive ao assistir “Victoria”, rodado todo em plano-sequência e dirigido por Sebastian Schipper. As escolhas estéticas, entretanto, são completamente diferentes: enquanto o longa-metragem alemão buscava construir sua narrativa na ausência de cortes e no reenquadramento constante, Benny e Josh Safdie apostam numa montagem ágil e uma trilha sonora que corrobora este sentido de urgência, tudo envolto por um visual repleto de luzes coloridas e uma textura bastante granulada, alcançada pelo diretor de fotografia Sean Price Williams ao se dar ao luxo de rodar em 35mm. Ainda assim, ambos os filmes resguardam um sentido bastante pungente de desordem e iminência dramática que cumprem um objetivo claro de manter o espectador em constante interação com o que está sendo exposto em tela. Benny Safdie, além de montar e dirigir o filme (ao lado de Ronald Bronstei e seu irmão Josh, respectivamente), também interpreta Nick, irmão do protagonista Connie, por sua vez vivido por um Robert Pattinson competente e impetuoso (não necessariamente uma novidade, vide seus últimos trabalhos em “Cosmópolis”, “Mapas para as Estrelas” e “Life: Um Retrato de James Dean”). Com um primeiro ato que apresenta de forma bastante concisa o grande interesse do filme – os sentimentos de Connie diante do mundo e, sobretudo, para com seu irmão –, somos atravessados até por algumas pistas, mas jamais ficamos sabendo efetivamente do passado desses personagens e de como cada um chegou a ponto em que se encontram. Um dos méritos do roteiro, aliás, está no emprego dessas sutilezas e não em tentar conferir apelo dramático ou choque por vias fáceis ou óbvias. Em determinado momento do segundo ato somos apresentados a um novo personagem que reconfigura um pouco os caminhos pelos quais estávamos sendo conduzidos. Após o fracasso de um roubo, Nick é preso e, posteriormente, levado ao hospital. Connie consegue invadir o hospital e fugir com o suposto corpo do irmão desacordado numa cadeira de rodas, apenas para descobrir depois que na verdade raptou Ray, um jovem que acabou no hospital por conta de uma situação inacreditável justamente no dia em que fora solto da prisão – e a sequência deste relato talvez seja a mais inspirada de todo o filme, com direito a litros de ácido lisérgico e uma profusão de elementos excêntricos (incluindo uma curtição no fliperama da cidade e uma perseguição desvairada num parque de diversões). No terceiro ato já estava um pouco cansado da fotografia repleta de flares e da trilha bombando a todo vapor, mas nada que diminua a competência de “Bom Comportamento”, que se encerra de maneira circular e perspicaz com uma cena bastante representativa e que permanece na tela durante todos os créditos finais. (Leandro Luz)