por Isabel Wittmann, especial para o cinematório
Nesta quarta leva de descobertas na Mostra, encontrei uma decepção e três dos melhores filmes até agora. Confira as resenhas abaixo e clique aqui para ler todos os textos publicados durante a cobertura.
“Estocolmo, Meu Amor” (Stockholm, My Love, 2016), de Mark Cousins
Mark Cousins é um cineasta e crítico de cinema mais conhecido por sua produção sobre a própria sétima arte. É provável que seu trabalho mais notório seja o documentário serial “A História do Cinema: Uma Odisseia”, um delicioso compilado de 15 episódios com uma hora de duração cada, em que aborda a história do cinema de forma pouco óbvia, fugindo dos grandes clássicos e focando em filme menos conhecidos de países diversos. Em virtude de sua visão bastante particular do que caracteriza um cinema historicamente relevante, resolvi arriscar com esse filme, seu primeiro de ficção. E o resultado não foi positivo.
Ele é protagonizado pela cantora Neneh Cherry, que interpreta Alva Achebe uma mulher que anda pelas paisagens de Estocolmo refletindo sobre a sua vida, suas perdas, vivências e aprendizados, além da história da própria cidade, enquanto visita construções marcantes e locais ao ar livre. A primeira metade do filme é narrada em off em primeira pessoa sem descanso: a personagem divaga, em frases poéticas, sobre o que aconteceu na sua vida, compartilhando tudo com o espectador. Em determinado momento afirma já ter falado demais e por isso vai só olhar e escutar. Daí em diante sua voz some até quase o final do filme e só a vemos andando, enquanto frases que refletem seus pensamentos aparecem na tela sob a forma de legendas que pairam sobre as imagens. O texto de Cousins é facilmente reconhecível.
Árvores, crianças, caramujos, rios, igrejas, mesquitas, praças, risadas, pássaros, trilhas, chuva, carros, monumentos, musgo: uma sucessão de imagens que funcionam quase como slides. É quase um “Rio, Eu Te Amo” que ao invés de ser patrocinado por um órgão público de turismo, é realizado por alguém que almeja soar poético. “Isso é felicidade?”, pergunta a legenda. Se depender do estado de espírito ao assistir ao filme, definitivamente não.
“As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra
Juliana Rojas e Marco Dutra já há muito mostram que em se tratando de cinema de gênero, eles sabem o que estão fazendo. Os curtas já eram um indício, mas o longa “Trabalhar Cansa” foi a confirmação, bem como os trabalhos solo em “Sinfonia da Metrópole” e “Quando Eu Era Vivo”. Sempre mesclando o terror com outros gêneros, aqui trazem uma fábula sobre trabalho, cidade, relacionamentos e, claro, maternidade: temas que já haviam sido trabalhados em filmes anteriores.
Ana (Marjorie Estiano) é uma mulher que já passou da 20ª semana de gestação e está em busca de uma babá. Com treinamento em enfermagem, Clara (Isabél Zuaa) acaba sendo a candidata escolhida. Ao chegar para a entrevista já é alertada para utilizar o elevador de serviço. O emprego é um em que acumula funções: precisa cozinhar e limpar enquanto a criança não nasce. Como Ana é mãe solo, também a acompanha nas consultas médicas e assim as duas descobrem que ela está com a pressão alta e deve se abster de carne até o parto.
A relação entre ambas as mulheres, encaixadas em um sistema de hierarquias étnico-racial e de classe, é complexa e complexificada ainda mais pela posição de patroa e empregada que paira entre a convivência, que obrigatoriamente traz o afeto e a intimidade e, por fim, o romance. Dado o pôster do filme, acredito não ser spoiler dizer que Ana gesta um lobisomem, embora nem ela o saiba. Clara logo percebe que algo está errado, entre o sonambulismo e o desejo por carne manifestado por Ana, e tenta minimizar os problemas acarretados por isso.
Trata-se de um filme que abarca dois filmes diferentes em si. O primeiro inclui tudo o que foi comentado até aqui e é simplesmente primoroso. A segunda metade foca em maternidade, infância, folclore e na artificialidade da vida na cidade, marcada por suas fronteiras. Aqui a realização torna-se irregular, especialmente prejudicada pela limitação no que tange aos efeitos visuais e ao ator mirim, mas ainda assim com uma qualidade que impressiona.
Além das atuações, outros elementos que se destacam são o uso das músicas que subitamente levam a película para o campo do gênero musical (obrigada, Rojas!) e o bebezinho animatrônico, que nos conquista logo a um primeiro olhar.
Ousado, sem medo de misturar gêneros, interessante, divertido e emocionante, “As Boas Maneiras” é um passo à frente no amadurecimento do cinema de gênero produzido no país.
“Café com Canela” (2017), de Ary Rosa e Glenda Nicácio
É difícil traduzir em palavras a sensação de assistir a esse filme, mas assim que acabou a sessão eu peguei o lápis, desenhei um coração no caderninho que levo para anotações e fechei-o. Certas coisas da subjetividade são difíceis de captar e materializar em palavras. A história é centrada em torno da vida de duas mulheres, Margarida (Valdinéia Soriano), uma ex-professora que se tornou reclusa após a morte de seu filho; e Violeta (Aline Brunne), uma jovem cheia de vida que vende coxinhas que ela mesma faz de porta em porta e cuida de sua avó idosa. Vizinho de Violeta, ainda conhecemos Ivan (Babu Santana), que vive com seu marido e o cachorro chamado Felipe. Na laje da casa de Violeta esses e outros personagens se encontram e conversam sobre suas vidas, a morte e o seguir em frente.
A dupla novata de diretores é saída da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e é lá na região que tudo se passa. O sotaque, as casas, as roupas: tudo nos desloca para um interior repleto de tranquilidade, memória e carinho. Enquanto a casa de Margarida temos café, cigarros e moscas, na de Violeta há barulho e há amor. Margarida esconde os espelhos, Violeta a quer fazer enxergar.
Pequenos gestos cotidianos têm grande significado, como aqueles provenientes das religiões afro-brasileiras praticadas pelas personagens. A ancestralidade está presente de forma marcada. Purificar-se antes de entrar em casa é um rito rápido, mas que é captado com grande beleza. Já a tormenta e a efervescência são capturados com estilo aronofskyano: ferve o café, apaga o cigarro, frita a coxinha, encolhem as paredes. Nem tudo são flores, claro, na trajetória dessas duas mulheres e em certo momento surge um diálogo carregado com a mão dos diretores-roteiristas, explicando de forma didática porque o cinema é tão intenso. Mas apesar disso o filme conquista por sua intimidade sincera. Trata-se de cinema de afeto.
“Loveless” (2017), de Andrey Zvyagintsev
Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e candidato da Rússia a uma vaga para o Oscar de melhor filme estrangeiro, Loveless tem muito a dizer sobre as relações entre pessoas naquele país e a situação dele mesmo. Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin) estão se divorciando. Ela já tem um namorado mais velho e bem de vida, que mora em um apartamento grande e moderno; e ele arrumou uma namorada mais jovem, que está grávida e mora em um apartamento apertado com sua mãe. O apartamento deles mesmo, espaçoso, mas escuro e confuso como um labirinto, está à venda, para que possam dividir o dinheiro. As arquiteturas referenciam as relações. No meio disso tudo, quem sofre é o filho de ambos Alyosha (Matvey Novikov). O pai quer se livrar da responsabilidade e diz que ele tem que ficar com a mãe. Esta argumenta que ela quer seguir com sua vida tanto quanto ele. Ninguém quer ficar com o menino, que chora apavorado com as constantes brigas, escondido atrás da porta. Até que, sem amor, foge de casa.
A montagem paralela nos mostra que nesse meio tempo cada um dos pais estava com seus respectivos parceiros e ninguém se importou de cuidar do menino. A paisagem é nevada e na televisão anuncia ainda mais frio chegando. Daí em diante foca-se em encontrar a criança. A polícia diz que pouco pode fazer. Voluntários se oferecem. Alyosha tem um único amigo, que indica onde costumavam ir: se o lar do menino ruiu, o esconderijo deles é um conjunto de habitações abandonadas.
A mãe parece se importar mais com o conforto financeiro que adquire com o novo parceiro e com sua própria aparência. O pai, covarde, não consegue ficar só, e repete com a nova namorada os erros que já havia cometido antes. Utilizando um estilo frio, mas deslumbrante, Zvyagintsev revela os medos e egoísmos que pautam a estrutura falida da família tradicional que sustenta a economia. Boris não pode nem mesmo ser divorciado, senão perderia o emprego. Um colega de trabalho especula sobre o apocalipse, como que em um vislumbre das mudanças que irão acontecer.
Mas os pais não são de todo odiosos e também entrevemos suas fraquezas. Ela se faz presente especialmente próximo ao final, quando o destino dos dois é selado de maneira ambígua com um grito de dor, ficando a cargo do espectador decidir o que aconteceu.
Reestabelecida a rotina, mais uma criança cresce para ser negligenciada. E se as relações pessoais são decadentes, elas refletem as internacionais entabuladas pelo país. Na televisão, comenta-se sobre a crise na Ucrânia, a guerra, o mal comportamento do exército russo. Ao ar livre Zhenia encarna a própria Mãe Rússia, que literalmente corre sem sair do lugar. Loveless é um filme difícil de digerir, duro e pesado, mas extremamente poderoso.
Isabel Wittmann é crítica de cinema, doutoranda em Antropologia Social na USP, autora do blog Estante da Sala e uma das criadoras do podcast Feito Por Elas.