Em determinado momento de “Liga da Justiça”, enquanto o grupo de super-heróis saído dos quadrinhos da DC Comics discute uma ideia que poderia trazer o Superman de volta à vida, o velocista Flash (papel de Ezra Miller) lembra de “Cemitério Maldito” (1989), filme baseado no livro de Stephen King, em que animais de estimação mortos são ressuscitados, mas voltam, digamos… “diferentes”. A analogia acaba sendo perfeita para pensarmos no atual status do filão de filmes de super-heróis. Chegamos a um ponto em que os estúdios não parecem mais estar preocupados em contar histórias inspiradoras com esses personagens. Eles podem não ter o mesmo fim trágico que o Superman teve no filme anterior da série, mas estão sempre voltando, voltando e voltando. Seria bom se, de fato, voltassem algo que diferentes.
Ser uma inspiração e uma esperança para as pessoas faz parte do discurso que abre e fecha “Liga da Justiça”, mas esse é um discurso que soa mais como demagogia, já que o filme não se interessa em desenvolver a sensação de que o mundo precisa de super-heróis. Mesmo que existam cenas no início do filme que contextualizem o luto pela perda do Superman, o aumento da violência nas ruas, o pessimismo que paira sobre a sociedade, essas são cenas pouco representativas para o todo. “O Homem de Aço” e “Batman vs. Superman”, com todos os seus problemas, ao menos tiveram a preocupação que o novo filme não demonstra ter. Na verdade, o que “Liga da Justiça” reitera diversas vezes é uma necessidade de ser apenas uma aventura colorida, e não o encerramento de um arco lúgubre que sinalizava trazer de volta, em sua conclusão, justamente, a inspiração e a esperança que os heróis transmitem.
Batman (novamente Ben Affleck) decide criar a Liga porque, do alto do seu egocentrismo, sente-se culpado pela morte do Superman (Henry Cavill) e se dá conta de que “não pode salvar o mundo sozinho”. Para além dessa súbita crise de consciência, o que o deixa alerta de que precisará de ajuda é o surgimento de seres alados estranhos que “farejam” o medo. Não se sabe se é o medo do próprio Bruce Wayne ou do criminoso que ele usa como isca para atrair uma das criaturas. O fato é que essa nova horda de inimigos obedece a um líder, o vilão Lobo da Estepe (dublado por Ciarán Hinds, excelente ator, escondido e desperdiçado atrás de um dos mais mal feitos personagens digitais colocados num filme por um estúdio de Hollywood nos últimos 10 anos). No entanto, ninguém, além dos heróis, parece saber da existência do tal Lobo, nem mesmo a sempre atenta Lois Lane (Amy Adams) ou qualquer repórter do Planeta Diário. Isso porque o mundo de “Liga da Justiça” lembra mais um mundo pós-apocalíptico em que há poucas pessoas habitando a Terra. Faz falta ter mais gente comum ali. Como elas não são incorporadas à ação, parece que o grande feito daqueles personagens tem o impacto de uma brincadeira no parquinho do bairro.
Concebido pelo diretor Zack Snyder (e continuado por Joss Whedon, que serviu como uma espécie de diretor auxiliar ou continuísta na fase de pós-produção), o mundo em que “Liga da Justiça” se passa é por demais estilizado e pouco se parece com o nosso, destoando até mesmo daquele visto nos longas anteriores da série. E aí reside a primeira diferença entre este e os filmes da Marvel que a Warner/DC Comics passou a ser acusada de copiar há coisa de um ano para cá. Ora, me desculpem, mas se o estúdio está copiando algo do concorrente é o que não funciona. Afinal, o que tem de Marvel em “Mulher-Maravilha” é o terrível ato final e os vilões mal construídos, mas o filme de Patty Jenkins acerta em tudo o que vem antes, mesmo que sem correr muitos riscos (na verdade, o filme “copia” mais do “Superman” de Donner do que de qualquer filme da Marvel). Em “Esquadrão Suicida”… Bom, o que funciona ali? E “Liga da Justiça” se aproxima de um filme da Marvel apenas pelo humor mais frequente, usado aqui como muleta para fazer a transição entre uma sequência e outra. Então, a questão não é que a DC “marvelizou”, mas que “Liga da Justiça” parece um filme ruim da Marvel porque a própria Marvel passou dessa fase de fazer filminho de herói salva o mundo — já está, ela mesma, satirizando seus feitos, vide “Guardiões da Galáxia” e o recente “Thor: Ragnarok”. Para usar uma analogia apropriada à indústria de consumo em que Hollywood se insere, poderíamos dizer que a Marvel é a Coca-Cola dos filmes de super-heróis, enquanto a DC é a Pepsi: a única coisa boa que a primeira tem é o sabor e a segunda só consegue copiar o resto.
Mas não quero aqui ficar no campo de batalha entre fãs dos dois lados, até porque concordo que os filmes da Marvel se tornaram rapidamente repetitivos e enfadonhos em sua maioria (as exceções seriam os do Capitão América, que têm alguma consistência e parecem mais conectados à linha narrativa principal do “universo compartilhado”). O ponto é que “Liga da Justiça” destoa de “Homem de Aço” e “Batman vs. Superman” porque não há aqui uma proposta mais clara e ambiciosa (OK, por vezes presunçosa) que vimos naqueles dois filmes, onde existe ao menos a audácia de questionar aqueles personagens, e não apenas reiterá-los como heróis. Ainda que as coisas estejam mal ajambradas lá, pelo menos fugimos da curva. Já em “Liga da Justiça”, parece que os donos da marca pensaram: “Temos que fazer esse filme agora ou nunca!” E saiu do jeito que deu para fazer, inclusive quebrando o arco dramático que vinha sendo construído (“O Homem de Aço” é um filme sobre o nascimento do herói; “Batman vs. Superman”, sobre a morte através do sacrifício; e este deveria ser sobre o retorno, que acaba acontecendo, mas sem qualquer emoção, apenas por conveniência e de um modo tolo).
“Liga da Justiça” passa a sensação de que é um filme que poderia ser resumido em um episódio de 20 minutos da série animada, e nem seria dos melhores. Não temos uma construção crível do relacionamento dos personagens. Sem o Superman presente na maior parte do tempo, Batman se sobressai como protagonista, mas, por questão de coerência com a narrativa global dos filmes, a líder da Liga deveria ser a Mulher-Maravilha (Gal Gadot). Não só por ser quem, dentre os heróis, tem a personalidade mais forte e o carisma necessário a uma liderança (algo que, convenhamos, nem este Batman, nem este Superman possuem), mas porque ela conhece o vilão e o retrospecto do combate realizado contra ele no passado em Themyscira (aliás, uma fatia da história narrada em flashback que se revela a melhor parte do filme, por sinal). Se Diana vem observando a humanidade há um século, é óbvio que ela é quem deveria estar à frente da formação da Liga, e não o Batman por um sentimento de culpa. Até mesmo o Aquaman (Jason Momoa), pela importância que nos dizem ter os atlantes, deveria ter sido melhor aproveitado ao invés de ser apenas um joguete de matar capangas que mal consegue usar seus poderes – e o filme não faz por ele o que “Batman vs. Superman” fez pela Mulher-Maravilha, o que provavelmente prejudicará o seu filme solo. O Ciborgue (Ray Fisher) parece mais integrado à trama que envolve as três caixas que o Lobo da Estepe procura. Ele até ameaça ter um papel com consequências mais interessantes para a trama, mas também passa essa sensação de que ficou limitado a ser o coadjuvante que convém ao roteiro, assinado por Whedon e Chris Terrio. O Flash, cumprindo o papel do alívio cômico, provavelmente terá uma sobrevida melhor fora da Liga por se encaixar no perfil de herói jovial e debochado (à la o recente Homem-Aranha, por exemplo) que ultimante agrada mais o grande público.
Se Snyder preparava algo com mais conteúdo, antes de se afastar do projeto em plena pós-produção, talvez fique para sempre no campo das especulações. Talvez. Afinal, a Warner pode muito bem chamá-lo de volta algum dia para completar o que pretendia e, assim, lucrar mais alguns milhões para satisfazer a curiosidade dos fãs. Mas temos que nos ater ao filme que está aí e ele não é inspirador. Na verdade, é o contrário disso e só perpetua o infortunado legado da DC Comics no cinema, o que é uma pena, pois é um universo riquíssimo a ser explorado. Mesmo que “O Homem de Aço” e “Batman vs. Superman” sejam imperfeitos e até mesmo falhem em vários aspectos, ao menos não são filmes que se contentam em ficar na superfície. Se falharam, assumiam esse risco. E a grande surpresa de “Liga da Justiça” acaba sendo essa: se torna tão apático ao tentar a todo custo copiar a “fórmula do sucesso” que pode acabar nos fazendo defender dois filmes que julgávamos inferiores. O quão irônico é isso? ■
“Liga da Justiça” está em cartaz nos cinemas.