por Leandro Luz
Há uma cena particularmente reveladora em “Extraordinário” que resume com precisão os motivos pelos quais seu universo se apresenta de forma tão encantadora, ao mesmo tempo em que evidencia a sua maior fragilidade. Auggie (Jacob Tremblay) se prepara para deixar o conforto e proteção dos pais (Julia Roberts e Owen Wilson) e irmã (Izabela Vidovic) para encarar definitivamente o mundo em seu primeiro dia de aula numa escola convencional – até então ele havia sido educado apenas em casa. Neste momento tão sensível e crucial, responsável por marcar o início do segundo ato do filme, o gesto carinhoso e enigmático de Via, ao falar no ouvido do irmão algo que não escutamos, imediatamente nos leva a sentir a mesma coisa que o protagonista, e o mais impressionante é que não precisamos da informação que o personagem detém para que sintamos o mesmo calor do afeto que ele sente. Torna-se evidente, aqui, como o diretor Stephen Chbosky compõe seus personagens e arquiteta situações com a habilidade e a sensibilidade necessárias para contar esse tipo de história, algo que eu já havia notado em seu longa-metragem anterior, “As Vantagens de Ser Invisível” – que como me foi dito certa vez por um amigo, e eu compartilho da afirmação: “certamente seria um dos filmes da minha vida caso eu tivesse assistido ali pelos idos dos meus treze, catorze anos de idade”. Mais para frente na trama passamos a enxergar o filme pelo ponto de vista de outros personagens, até que somos trazidos novamente para esta mesma cena, só que desta vez, infelizmente, o mistério sussurrado nos é revelado sem que nada além seja acrescentado em termos narrativos, alimentando a noção de que o filme certamente seria muito mais efetivo caso se mantivesse fiel à própria sutileza proposta em seu terço inicial.
Muito provavelmente a necessidade de uma correlação mais estreita com o material original e a ambição do estúdio por prêmios e grande bilheteria conduziram o filme para um caminho mais óbvio e fácil. Apesar de não ter lido o livro de R.J. Palacio (pseudônimo de Raquel Jaramillo) que serviu de base para o roteiro, escrito em seis mãos pelo próprio Chbosky, ao lado de Steve Conrad e Jack Thorne, me parece que a opção por adotar os pontos de vista de diversos personagens só ajudou a diminuir o impacto das cenas e transformar tudo num tom edificante e esperançosamente ingênuo que já estamos mais do que saturados.
Por sorte, os méritos de “Extraordinário” não ficam restritos à cena descrita acima. Apesar do recurso de narrar a partir dos múltiplos pontos de vista não funcionar como deveria, os personagens foram muito bem escritos e o casting fez um trabalho caprichoso ao escolher a dedo atores talentosos entre os já bem conhecidos do público e novatos promissores. Representando o primeiro grupo estão o sempre carismático Owen Wilson, responsável pelas principais tiradas cômicas que conferem fundamental leveza ao filme, e Julia Roberts, bastante confortável no papel de uma mãe que enfrenta o grande desafio de ser a espinha dorsal da família, que apenas não desmoronou graças a sua força e resiliência constantes. Já o segundo grupo nos apresenta, entre outros, os jovens Izabela Vidovic e Noah Jupe (irmã e amigo do protagonista), ambos muito expressivos e que frequentemente roubam a cena quando estão em tela. Difícil é saber onde encaixar Jacob Tremblay nesta equação.
Não necessariamente um novato (vide seu personagem em “O Quarto de Jack”, dirigido por Lenny Abrahamson em 2015, e os inúmeros prêmios aos quais foi indicado), certamente seu talento já é conhecido pela indústria e pelo público. Desta vez, o ator de 11 anos interpretou com segurança e sob quilos de maquiagem August “Auggie” Pullman, um garoto que precisa se aventurar por um dos universos mais assustadores e cruéis para um ser humano de sua idade: a turma de 5ª série de sua nova escola.
Para além de um elenco afiado e da excelente construção de personagens, que começa no roteiro, mas é na direção de arte de Kendelle Elliott e no figurino de Monique Prudhomme que percebemos a sua real dimensão (reparem como as fantasias de Auggie, a arrumação de seu quarto e o jeito como Via se veste, sem jamais querer chamar atenção para si, dizem muito mais sobre os personagens do que qualquer linha de diálogo), alguns recursos narrativos ainda conferem algumas surpresas. Após se sentir traído pelo seu melhor amigo, Auggie deixa de falar com Jack, até ser convencido por Summer (Millie Davis – quanta criança talentosa nesse elenco!) que o conflito entre os dois deveria ser deixado de lado. A cena da reconciliação talvez seja uma das mais atuais de que tenho conhecimento: os dois garotos trocam mensagens pelo chat do jogo “Minecraft” e decidem fazer as pazes. Toda a conversa se dá a partir da paisagem e dos personagens geométricos do jogo, que tomam o quadro por completo, com as caixas de diálogo eventualmente saltando na tela. Uma representação absolutamente verossímil da relação de amizade entre dois pré-adolescentes em pleno século XXI.
O trabalho executado por Don Burgess, diretor de fotografia, é também algo a se destacar aqui. A paleta de cores evidenciando a cor azul e a utilização de câmera lenta compõem uma rima visual elegante que inicia e encerra o filme. Ao olharmos para Auggie e seu capacete de astronauta percebemos por quantas mudanças o personagem passou. Burgess ainda nos presenteia com uma cena visualmente belíssima de Via e sua avó (Sônia Braga, uma grata surpresa) conversando na areia da praia em Coney Island. A cena-flashback tem um peso importante para a construção da personalidade e das motivações da adolescente, mas não deixa de soar deslocada do restante da obra.
Apesar de impedir que seu longa-metragem caia num “dramalhão” completamente rasteiro, Chbosky vez ou outra ainda se rende aos clichês do gênero. Uma das cenas finais envolvendo a homenagem que Auggie recebe na escola é exatamente igual a incontáveis outras cenas de diversos outros filmes, e apesar de eu sempre ficar encantado com closes de pessoas batendo palmas e reagindo a um momento bonito no cinema (os sorrisos sempre me parecem tão sinceros), a cena não deixa de funcionar como uma lição de moral didática e pouco inspirada.
Se deixarmos de lado as frases de autoajuda (“quando tiver que escolher entre estar certo ou ser gentil, escolha ser gentil”) e o fato de as crianças falarem e agirem frequentemente como adultos – um problema constante em filmes desse tipo (o mesmo me ocorreu ao assistir “It: A Coisa”, dirigido também este ano por Andy Muschietti) –, “Extraordinário” ainda prevalece como uma obra relevante repleta de personagens fortes e de sensibilidade acima da média para tratar de assuntos espinhosos como bullying, aceitação do próprio corpo, construção de identidade na adolescência e parentalidade. Tal qual o projeto de ciências de Auggie, que deixa a tradição dos vulcões em erupção para trás e investe em uma emblemática câmara escura, aproveitando para enaltecer a história do cinema e a sua capacidade monumental de gerar empatia, o filme também está muito mais interessado em investir na vibração e no conflito de seus personagens do que em simplesmente causar lágrimas fáceis no espectador, por mais que fracasse vez ou outra neste propósito. ■
“Extraordinário” está em cartaz nos cinemas.