O documentário “Maria – Não Esqueça que Eu Venho dos Trópicos” estreou nos cinemas brasileiros no dia 16 de novembro e segue em cartaz pela quarta semana. O filme revisita a vida e obra de Maria Martins, escultora, gravurista, pintora, desenhista e escritora, conhecida principalmente pela aproximação ao surrealismo em sua obra. Ela foi uma das primeiras artistas brasileiras a tratar da sexualidade e do desejo sob a perspectiva feminina. Através de entrevistas, o longa investiga a trajetória da Maria, incluindo seus estudos na Europa e sua relação amorosa e profissional com o iconoclasta pintor e escultor francês Marcel Duchamp.
Na entrevista a seguir concedida ao cinematório (por e-mail), os diretores do documentário, Francisco C. Martins e Elisa Gomes, contam um pouco sobre a vontade de contar a história de Maria Martins e a importância de tirá-la do esquecimento.
Como surgiu a ideia do projeto? Como conheceram o trabalho da artista ou a partir do que surgiu o interesse por ela?
Elisa Gomes: Esse é um desejo de mais de 10 anos. Conhecia bem a sua incrível história e suas obras transgressoras através de um contato próximo com a família. A ideia sempre foi resgatar e iluminar Maria. Um trabalho de valorizar a memória de uma artista, mulher brasileira, tão importante e tão desconhecida do público.
Francisco C. Martins: Em 1971, vi pela primeira vez “O Impossível”. Foi um impacto e surpreendi-me ao saber que era de uma artista brasileira de quem eu nunca tinha ouvido falar antes pois, apesar do sobrenome em comum, Maria Martins não é minha parente. Depois ocasionalmente vi outras de suas esculturas, mas estava fazendo ou tentando fazer outros filmes e esqueci esse incidente. Porém quando Elisa Gomes me convidou para fazer um documentário sobre Maria Martins, essa memória de 40 anos antes imediatamente ressurgiu, tão clara e vívida como se tivesse acontecido poucos dias antes. Aceitei imediatamente.
Francisco dirigiu, com Helena Ignez, “Luz nas Trevas, A volta do Bandido da Luz Vermelha” (2010), e agora trabalha em parceria com Elisa Gomes. Acha importante a presença de uma mulher no processo? Acredita na diferenciação de um suposto “olhar feminino”, ou um lugar de fala?
FCM: Não sou sexista e antes fiz três filmes com José Antonio Garcia. Acho que todos que trabalham com arte acreditam em uma certa universalidade da linguagem e da experiência humana. Grandes personagens femininas foram criadas por homens, vice-versa. Compartilho com Noemi Jaffe a suspeita que generalizações como “olhar ou voz, femininos ou masculinos” no fundo sejam outra forma de disfarçar preconceitos. O que seria um “olhar feminino”? Por exemplo, não vejo absolutamente nada em comum entre o cinema de Leni Riefenstahl e o de Anna Muylaert, Lili Caffé, ou Tata Amaral, para citar apenas três cineastas que admiro. Então minhas parcerias sempre foram em função de afinidades com o tema e o filme, independente do sexo da pessoa. Considero a com Elisa Gomes entre as mais bem sucedidas.
Como chegaram à escolha de Malu Mader (como entrevistadora) e Lucia Romano como intérprete das narrações de Maria?
EG e FCM: Malu Mader procurou Nora Lobo, a filha de Maria Martins, porque estava interessada na história da artista, mas quando soube que havia o projeto de um documentário, se juntou a nós e sua colaboração foi muito bem-vinda. Foi interessante ter ela trabalhando numa função diferente da atuação tradicional. Quanto a Lúcia Romano, também conhecíamos seu trabalho, principalmente em teatro, e precisávamos de uma atriz especificamente para os textos que tínhamos selecionado. A chamamos para um teste e foi ótimo. Com ela encontramos o tom que queríamos de uma leitura dramática, que fica entre a interpretação e a narração. Queríamos deixar claro para os espectadores esse procedimento, tanto assim que ela também dá os textos de Clarice Lispector na entrevista que aparece no filme.
Como se deu o acesso aos escritos da Maria Martins mencionados no documentário? Diários dela? Publicações?
EG e FCM: Das maneiras mais variadas. O trabalho de pesquisa da Eloá Chouzal foi fantástico, mas além disso muita gente colaborou. Tivemos a biografia de Graça Ramos que já tinha feito um levantamento prévio, tinham escritos que estavam com a família, e também teve material que foi descoberto por amigos, que sabiam que estávamos fazendo o documentário.
Elisa Gomes e Francisco C. Martins – Fotos: Pandora Filmes/Divulgação
Qual foi a recepção do documentário e as questões de distribuição? Foi possível uma maior divulgação de uma artista tão importante e tão pouco discutida no país, no sentido de criar um “museu feminista” virtual? Consideram que a invisibilidade tem a ver com ela ser uma mulher tão a frente de seu tempo ou mais por ter trabalhado uma sexualidade tão visceral e explícita, retratada em suas deusas e monstros?
EG e FCM: A reação de quem assiste é ótima. As pessoas se envolvem e emocionam com o filme quase como se fosse uma obra de ficção. Não apenas porque a história de Maria Martins é fantástica, mas também porque passam a ver as esculturas com um outro olhar e entender a relação entre a vida e a obra de uma grande artista. O problema, como sempre, é fazer com que as pessoas cheguem até o cinema. Nesse sentido o mercado brasileiro é muito concentrado em poucos filmes e especialmente cruel com lançamentos pequenos como o nosso. Entretanto acreditamos que esse é um tipo de filme que terá uma vida longa também em outras mídias, porque sem ser didático e cansativo ele tem um grande conteúdo de informação. É a melhor maneira de se conhecer toda a obra de Maria, que hoje está sendo reconhecida como a maior escultora brasileira da primeira metade do século XX. Então estamos muito felizes em fazer parte desse processo.
Quanto ao fato dela ter ficado desconhecida por tanto tempo, Paulo Herkenhoff comentou que geralmente há muitas razões para esse tipo de “invisibilidade” e Maria Martins sempre foi uma personagem controversa no Brasil. Separou-se de um intelectual importante quando as mulheres aqui sequer tinham direito a voto e perdeu a guarda da filha. Teve uma obra construída principalmente no exterior e que dialogava mais com as vanguardas internacionais do que com as nacionais. Era amiga de Getúlio Vargas e visitou a China de Mao Tsé-Tung, o que certamente também não agradava os conservadores. Além disso, tem um trabalho rigoroso, que nunca se encaixou em modismos nem fez concessões ao mercado. Enfim, sua pessoa e sua obra não eram “convenientes” para muita gente. Mas felizmente isso está mudando e nós estamos fazendo a nossa parte para tirá-la desse esquecimento.
Sobre a relação de Maria Martins com o artista Marcel Duchamp, durante a produção do documentário houve alguma revelação mais surpreendente?
EG e FCM: Os depoimentos dos curadores e historiadores como Michael Taylor e Francis Nauman nos trouxeram uma nova versão desse relacionamento. Eles colocam o casal numa situação de igual para igual, de fato uma parceria afetiva e artística. Fica claro nesses depoimentos e nas cartas de Duchamp também, a força e a competência dessa mulher e a paixão dele por ela.