por Leandro Luz
Para Elio (Timothée Chalamet), um verão é o suficiente para que Oliver (Armie Hammer), “o usurpador”, se transforme na grande paixão de sua vida. Por quanto tempo não sabemos: um par de anos ou uma vida inteira? A juventude é mesmo intensa, efêmera e devastadora. Os traumas que vivenciamos nesse período nos acompanharão pelo resto de nossas vidas e nos definirão enquanto sobreviventes de um mundo ambivalente: ora grotesco, ora doce; gentil e cruel; sensível e assustadoramente castrador. E ainda que guarde tantas vicissitudes, as melhores ou pelo menos mais saudosistas lembranças costumam vir justamente deste cosmos temporal, desta fenda nebulosa que insiste em nos acompanhar. Nos agarramos a estas recordações com afinco. Alguns de nós até mesmo sucumbimos à força centrípeta de seus anseios – ou tentamos nos libertar, mesmo conscientes de que nunca conseguiríamos fazê-lo em sua plenitude.
Ambientado “em algum lugar no norte da Itália”, como as legendas prontamente nos informam, “Me Chame pelo Seu Nome” transmite uma infinidade de sensações através dos desejos e inseguranças de seu protagonista adolescente. A chegada de Oliver no verão de 1983 muda sutilmente a rotina da família e dos amigos que circulam pelo local, impactando a todos. Sobretudo Elio, é claro. O italiano Luca Guadagnino (“Um Mergulho no Passado”, de 2015, e responsável pelo remake de “Suspiria”, planejado ainda para este ano) executa com personalidade, a partir do roteiro de James Ivory, por sua vez baseado no romance homônimo de André Aciman, planos que parecem sempre lidar com a dualidade entre aqueles corpos masculinos – os músculos e a fisionomia atlética do recém-chegado, o torso magricela e a as pernas franzinas do menino; o calção de banho pendurado na banheira, as cuecas lavadas pela empregada; o andar de bicicleta lado a lado, as inúmeras refeições à mesa. A partir de um arco dramático clássico, o diretor tenta garantir consistência a uma história que poderia se resumir ao mais do mesmo de um encontro entre pessoas atraentes e ricas. A sutileza e o aparente decoro são sua maior arma para tal.
A família de Elio passa as férias de verão num lugar que se me fosse dito paraíso acreditaria piamente sem nem ao menos questionar. A mansão bem iluminada e aconchegante, a ampla mesa de jantar no jardim, as árvores ao redor da construção, as piscinas naturais e o clima estupidamente sedutor da região transportam os personagens (e o espectador) para uma espécie de universo deslocado do tempo e espaço, abdicando de intervenções externas (à exceção do universo pop característico da década de 1980 – a camiseta com a estampa da banda Talking Heads e a trilha sonora selecionada não me deixam mentir) para que nos concentremos nas relações que se criam entre admirador/objeto de desejo; menino/menina; mãe/filho; professor/assistente – nesse aspecto, todos os relacionamentos fabricados aqui são bem explorados e garantem um senso catalisador para a narrativa.
“Porque era ele, porque era eu”, reitera-se sem muita necessidade, mas as frases feitas não parecem incomodar o diretor, assim como não o exasperam as cenas que soam longas demais – ainda não sei até que ponto a última cena do filme funciona dramaticamente, ou se ela apenas enfraquece toda a mágica que presenciamos até então. Guadagnino parece curtir os excessos (não exatamente na encenação, mas na forma). Melhor, parece busca-los, e é gritante a maneira como ele insiste em interferir na imagem ao inserir, por exemplo, filtros coloridos e imagens com efeito de negativo invertido numa determinada sequência de sonho/delírio do protagonista. Isso tudo ao lado, claro, de Sayombhu Mukdeeprom, seu diretor de fotografia (também responsável por obras como “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas”, de Apichatpong Weerasethakul, e a trilogia “As Mil e uma Noites”, de Miguel Gomes). Nada disso, entretanto, tira a força da narrativa construída aqui, e é curioso notar como o trabalho de câmera é extremamente bem elaborado sem soar exibicionista, como fica evidente na cena em que Elio e Oliver conversam ao redor de um monumento da Primeira Guerra Mundial e somos conduzidos pelo flerte dos personagens num sutil e elegante plano-sequência.
Curioso como o projeto de “Me Chame Pelo Seu Nome” não previa, em sua origem, o envolvimento de Guadagnino na direção. Ivory chegou a ser cotado, inclusive, mas após negociações de orçamento (o filme acabou sendo rodado em 30 dias e teve um investimento de aproximadamente 3 milhões e meio de dólares), o próprio italiano, que já estava comprometido com a produção, resolveu assumir o projeto reduzindo radicalmente seus custos (“sou um diretor eficiente, eu faço o que tenho que fazer”, afirma ele em entrevista ao DP/30).
A relação que se estabelece entre Elio e sua própria sexualidade talvez seja o grande objeto de estudo para Guadagnino. O primeiro beijo entre ele e Oliver. Sua primeira vez com Marzia (Esther Garrel, roubando todas as cenas em que está presente). A cena do pêssego. O sexo é representado de muitas formas: um abraço mais demorado; o observar de uma dança; o ciúme irritante nos olhos de quem vê o que não quer; o perfume da roupa de cama usada. “Me Chame Pelo Seu Nome”, nesse sentido, pulsa e capta as principais discussões contemporâneas sobre sexo, relacionamento, afeto e amor romântico. As múltiplas reflexões podem ser encontradas/ativadas nas frestas delicadamente abertas diante de nós – seja na decepção de quem vê suas expectativas sendo frustradas, seja no sorriso orgulhoso de alguém que acaba de conquistar o outro, ou mesmo o misto de culpa e impotência presente no rosto de um pai ou uma mãe.
Nós escolhemos como decepcionamos uns aos outros? Escolhemos como decepcionamos a nós mesmos ao longo da vida? O longo diálogo entre Elio (ou Oliver, a essa altura já não há diferença – “porque era ele, porque era eu”, novamente) e seu pai (Michael Stuhlbarg, numa grande performance) tenta nos responder, ou pelo menos nos permite refletir sobre a pergunta. É uma cena difícil, e em termos de roteiro e montagem considero bastante problemática até, mas o carisma dos atores e a extrema sensibilidade do diálogo me conquistaram. Aliás, toda a relação familiar que se cria ao redor do protagonista soa um tanto quanto artificial e paradoxalmente bela e utópica. Elio é o centro de todos e abala-se com tudo. O grande mérito do filme, isto posto, é assumir essa clareza ao mesmo tempo em que nos permite divisar como todos os outros personagens também sentem e amam e choram e se frustram a todo o momento, por mais que evidenciar esses sentimentos não seja o principal objetivo da obra. Mais uma vez estamos diante de Elio: as lágrimas que caem de seu rosto são também de Oliver, mas sobretudo nossas. É o prenúncio do inverno, portanto. O verão e o filme chegaram ao fim. ■
“Me Chame Pelo Seu Nome” está em cartaz nos cinemas.