A Mostra Tiradentes SP chega à sua 6ª edição, tendo iniciado sua programação hoje (15) e indo até 21 de março, no CineSesc, levando parte do que foi exibido em sua cidade de origem, Tiradentes, em Minas Gerais, e outros títulos selecionados especialmente para a itinerância. São 32 filmes brasileiros – 14 longas e 18 curtas em 19 sessões de cinema. Além disso, serão realizados 10 bate-papos com realizadores e curadores, um laboratório, uma oficina e um debate conceitual.
Dentro da programação de filmes, a Mostra Foco, que é dedicada a curtas-metragens, será exibida em sua totalidade na capital paulista. Assinam a seleção, os curadores Camila Vieira, Francis Vogner dos Reis e Pedro Maciel Guimarães, que reuniram 10 filmes de cinco estados. Os curtas paulistas também serão celebrados em uma seleção especial de quatro títulos, a Mostra Foco SP.
Aqui você confere críticas de todos os curtas da Mostra Foco, assistidos durante a 21ª Mostra de Cinema Tiradentes, em janeiro de 2018.
Obs.: As sessões da Mostra Foco em São Paulo estão programadas para os dias: 16/03 (sexta-feira), às 17h30; dia 19/03 (segunda-feira), às 19h30; e dia 20/03 (terça-feira), às 20h.
O Pessoal e o Coletivo
Estamos Todos Aqui
Direção: Chico Santos e Rafael Mellim (SP)
O que mais impressiona em “Estamos Todos Aqui” é a linguagem cinematográfica sendo fiel à vivência das pessoas retratadas. E isso foi o que mais criativamente representou a temática atual da Mostra de Cinema de Tiradentes, “Chamado Realista”. A montagem, o ritmo, a trilha sonora, os enquadramentos e movimentos de câmera acompanham as urgências e limitações das vidas dos moradores da Favela da Prainha, no litoral Sul de São Paulo, na iminência de despejo devido ao avanço do projeto de expansão da zona portuária.
Além disso, a personagem Rosa (vivida pela atriz, youtuber e militante trans Rosa Luz) traz mais camadas e intensidade na articulação entre a sua narrativa pessoal e a narrativa do que é coletivo — sendo que sua narrativa pessoal é também representativa de um coletivo marginalizado. Sua presença forte como mulher trans, negra e periférica se impõe em corpo e fala, trazendo energia e movimento para as questões levantadas pelo filme. Na contramão da apatia, dos planos contemplativos e de andanças melancólicas muito já vistos no cinema brasileiro contemporâneo, aqui há a pulsante corrida de Rosa, que a própria câmera parece quase não dar conta de acompanhar, tamanha velocidade. Há também caminhadas firmes por entre os barracos, que passam a impressão de labirintos sem saída, mas que não são capazes de tirar o vigor da personagem, que luta, resiste, apesar de tantas barreiras físicas e sociais.
Nós, como espectadores, somos provocados inclusive pelo jogo metalinguístico entre realidade e ficção, que explicita a composição da personagem e pergunta: “Como você acha que deve ser o final dela?” É um filme do qual não há como se distanciar, ele nos convoca e ainda crava uma frase final que permanece em nós: “Com quantos pobres se faz um rico?” Com mais indagações do que afirmações e mais rupturas do que prolongamentos, ele traça um discurso político esteticamente vibrante. Mostra como uma comunidade resiste e cria redes de apoio mútuo — e como resiste também o indivíduo e seu clamor por dignidade.
O curta foi o vencedor do Prêmio Canal Brasil de Curtas na 21ª Mostra de Cinema de Tirandentes, eleito pelo júri composto por mim, Daniel Oliveira, Filippo Pitanga, Flávia Guerra e Samantha Brasil.
Outras
Direção: Ana Júlia Travia (SP)
O filme entende bem e abraça uma questão feminista básica: nós somos muitas e diversas. E esse é o fio condutor de tudo que é proposto. A própria forma evoca a coexistência de múltiplas vozes e corpos. Há relatos em off de diferentes mulheres — em recortes de classe, idade, raça –, descolados das cenas que vemos, mas que ainda assim estão relacionados. Mesmo que pareçam fragmentos por vezes desconexos, sons e imagens se encontram num lugar que só é revelado a quem percebe o todo em questão: o ser mulher e o ser mulher negra. Ao mesmo tempo, essa dissociação possibilita à mulher falar sem ter um corpo atrelado a sua existência (e isso é libertador), além de provocar certo estranhamento e, portanto, proporcionar uma maneira mais ativa (e menos treinada) de reflexão sobre o que é visto, dito e sobre o que está no extracampo.
Há claramente duas partes na obra. Primeiro, o foco é na relação entre mãe e filha, tão importante para a identidade feminina e para o desenvolvimento da individualidade e autoestima da mulher. Segundo Doris Rinaldi, em seu artigo Mistérios da feminilidade: a relação mãe e filha no difícil caminho do “tornar-se mulher”, sobre o livro A Relação Mãe e Filha, da psicanalista Malvine Zalcberg, “desde que a função paterna – operadora estrutural do Édipo, decisiva para a constituição do sujeito – teve sua importância devidamente restituída por Lacan em sua releitura da obra freudiana, a análise do lugar da mãe ou da função materna na formação subjetiva foi deixada para segundo plano pelos psicanalistas em suas formulações teóricas”. O que dá ainda mais importância para as obras que se debruçam sobre o tema. Há também, no filme de Ana Júlia, outra camada: os impasses e angústias das diferenças numa dinâmica entre mãe branca e filha negra.
Na segunda parte, o que era pessoal ganha espaços e contextos políticos. Daí o filme perde um pouco sua conexão pelo particular para abarcar questões sociais mais amplas e enfrentamentos coletivos. A mudança é orgânica e a mensagem de que “ninguém existe sozinho” é clara e necessária, mas deixa um certo sentimento no espectador de querer saber mais sobre aquelas pessoas em suas particularidades.
Fantasia de Índio
Direção: Manuela de Andrade (PE)
A inquietação pessoal da diretora sobre sua ascendência é o ponto de partida desse documentário que tende para a narrativa ensaística, comentando sobre o apagamento dos grupos indígenas na História (em curso) do Brasil e, em consequência, na história das famílias brasileiras. O filme abre com rememorações fotográficas de festas infantis em que as crianças estão fantasiadas de índio, algo bastante comum entre nossos costumes, mas que sinaliza um imaginário cruel de estereótipos, esvaziamento e exotização (muito presente também na época do Carnaval). Manuela segue em sua busca, guiada por uma árvore genealógica feita pelo tio, que a leva até os Xukurus, povos originários que habitam o Pernambuco. Nesse caminho, compartilha com o espectador encontros, frustrações e descobertas, ao mesmo tempo em que nos desperta para esse abismo entre culturas.
Há muita beleza na forma como essa investigação se desenvolve, pois Manuela trabalha com planos de força poética, que se ligam esteticamente à uma dimensão espiritual, transcendente, muito inspirada pela religiosidade dos Xukurus, seus rituais, sua conexão com a natureza e relações pessoais. Há sequências criativas que mesclam animações, dando o tom de fabulação ao que é essencialmente documental. A “Fantasia” no título pode ser entendida não só como a vestimenta exótica problematizada no início do filme, mas também como campo de imaginação e sonho, do que se busca e não se realiza. A fotografia, o som e os enquadramentos são destaques, evidenciando um rigor formal de muita elegância. O uso de espelhos em algumas cenas, refletindo os espaços externos e não a imagem dos corpos que os carregam, são significativos dos lugares que são parte de nossas identidades e memórias, mas que, ao mesmo tempo, parecem dissociados de quem somos.
Inconfissões
Direção: Ana Galizia (RJ)
Assim como em “Fantasia de Índio”, “Inconfissões” rememora experiências pessoais para constituir-se como experiência coletiva. Neste caso, as fotos têm papel central, fazendo deste filme uma espécie de fotobiografia, com incursões de algumas imagens moventes gravadas em Super-8. Tais registros, aliados às narrações, documentam uma vida, mas também processos históricos e questões universais, especialmente ligados à cultura LGBT. O retratado é Luiz Roberto Galizia, tio da diretora, importante personalidade do teatro nas décadas de 1970 e 1980. Embora não seja um desconhecido, a forma como se desenvolve a narrativa é bastante íntima, sem espetacularizações ou clichês de homenagem. O material de arquivo constrói uma persona e também o tempo compartilhado socialmente.
Peito Vazio
Direção: Yuri Lins e Leon Sampaio (PE)
A melancolia é o tom de “Peito Vazio”, que tem um protagonista jovem num estado de não-lugar, pelo vazio que lhe deixou o término de um relacionamento e pela situação política do Brasil, provocando dúvidas, descrença e desmotivação. O desamparo sentido por ele é percebido também nos espaços urbanos decadentes, nas interações pouco significativas e na comunidade que resiste a uma desocupação. Mas à medida que o filme se desenvolve, ele vai encontrando novos afetos e descobrindo a vontade de se mover e de colaborar. Uma vontade que se mostra bem sutil e pouco ativa, é verdade, mas que parece brotar aos poucos. A planta que carrega e que seria um presente para a ex-namorada é talvez um símbolo de esperança que nutre pela resgate do amor perdido, por um futuro não tão cinza e um país mais decente. Ainda que seja singelo na abordagem da dicotomia da existência subjetiva e social, o filme passa certa ingenuidade e provoca distanciamento, pois carece de maior profundidade de camadas nesses personagens.
O Real e o Imaginário
Iara
Direção: Erika Santos e Cássio Pereira dos Santos (MG)
A princípio, a forma do filme entrega uma sensação de realismo. Ao que tudo parece será apenas um piquenique entre mãe e filha. Mas isso é logo desconstruído pela narrativa, que nos apresenta uma terceira personagem, saindo de um lago e, mesmo sendo “gente como a gente” em sua aparência, fica evidente sua natureza peculiar. A fábula que se constrói surge dessa relação amorosa entre as três e da estranheza que sentimos pela personagem de presença misteriosa. O lugar, a luz, os sons, as imagens em si não são nada fantasiosas, mas o sentimento de incerteza do que acontecerá e a insegurança quanto ao que se vê provocam o espectador constantemente. Todo esse contraste sutil entre o que reconhecemos como real e o que reconhecemos como fantasia acaba sendo o grande mérito do filme, que coloca em xeque como essas fronteiras podem ser borradas muito facilmente. Outros grandes pontos positivos são o domínio rigoroso da mise-en-scène e a abertura para diferentes interpretações fortemente ligadas ao feminino. É uma obra que remeteu aos cinemas de Juliana Rojas e Gabriela Amaral Almeida, embora não tenha a mesma força desses.
A Retirada para Um Coração Bruto
Direção: Marco Antônio Pereira (MG)
O curta mais divertido e nonsense da Mostra Foco tem sua narrativa centrada em Seu Ozório, senhor de 70 anos, que perde a mulher e passa a ter que viver sozinho em Cordisburgo, no interior de Minas Gerais. Entre sotaques e paisagens já facilmente reconhecidas como características da zona rural mineira, Ozório não se perde na solidão. Muito pelo contrário! Papeia com amigos, descobre (e se encanta) pelo rock’n’roll e até faz contato imediato de quarto grau com alienígenas que tocam heavy metal (!).
O filme subverte expectativas, transformando a ideia e estética de roça e de velhice em outra coisa inimaginável. Ele se entrega ao humor escrachado, misturando elementos de surrealismo, ficção científica e videoclipe. Mas nada disso de forma refinada ou pretensiosa. Com tanto apelo popular e sem cair na mesmice — incluindo aí o carisma inegável do personagem principal interpretado pelo poeta Manoel do Norte –, não é de se estranhar que tenha ganhado do público geral o Prêmio de Melhor Curta da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Definitivamente, um obra fora da curva, que refresca os olhos com sua simplicidade sincera e envolvente.
Quanto ao diretor, é bom ficar de olho, pois ele já teve outro curta de destaque este ano. “Alma Bandida” foi um dos 20 títulos escolhidos entre mais de 7 mil produções para integrar a programação do Festival de Berlim 2018 e participar da mostra competitiva de curtas. A competição teve outros dois títulos brasileiros, “Russa”, de Ricardo Alves Jr. e João Salaviza, e “Terremoto Santo”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, mas quem acabou levando o Urso de Ouro foi o israelense “The Men Behind the Wall”, da diretora Ines Moldavsky.
Sr. Raposo
Direção: Daniel Nolasco (GO)
Quase completamente entregue à fabulação, “Sr. Raposo” é um representante do cinema queer, que fala muito diretamente e com força estética sobre a cultura gay a partir da narrativa não linear de Acácio, um homem soropositivo em seus últimos dias. Os corpos são centrais, sendo a performance uma estratégia não só visualmente impactante, mas importante para a compreensão do próprio desejo e imaginário do personagem.
Em alguns momentos as cores são menos vívidas, mais melancólicas, em outros há cores reluzentes e símbolos comerciais como a Coca-Cola e revistas de moda, numa afirmação do pop como parte desse universo. Escolhas interessantes que reforçam o tom de artificialidade, de construção de imagens que não estão servindo ao objetivo de serem percebidas como uma realidade, mas como uma espécie de viagem libertária. Mas o erotismo explícito pode passar uma sensação de objetificação constante. Quanto à questão da AIDS, a intenção parece ser a de questionar todo um modo de representação e percepção dos portadores do vírus, muito problemática desde os anos 80, apesar de que atualmente tenha se evoluído em tratamento clínico e um pouco no aspecto social, o que pode gerar uma certa inadequação entre o tempo do filme e o tempo em que circula. Mas, ao mesmo tempo, falar sobre o estigma ainda é importante.
Febre
Direção: João Marcos de Almeida e Sérgio Silva (SP)
“Febre” é sobre o regresso de um jovem que esteve morando no exterior e agora revê seus laços deixados por aqui. Embora seja um tema ligado ao deslocamento, o filme em si nada se desloca da comodidade de planos minimalistas com cenários e figurinos perfeitinhos, que mais parecem ter saído de um fashion film pouco original, com citações soltas que não conseguem atrelar seus sentidos de forma eficiente à narrativa.
E se a intenção era falar também de conexões, há um sério problema sobretudo de conexão entre aquele universo alienado e o espectador. O rigor formal chama a atenção, é verdade. É perceptível o domínio de câmera e enquadramentos, a negação ao real, o dispositivo explicitado. Mas tudo parece apenas um exercício de estilo. Se há alguma crítica a esses jovens de classe média, meio perdidos, isso não é bem construído. Tampouco o interesse empático pelos seus personagens. Aliás, qualquer chance de empatia se perdeu quando em meio a um elenco de brancos, surge um personagem negro apenas como interesse romântico/sexual sem nenhum aprofundamento. O que salva são as presenças sempre hipnotizantes de Gilda Nomacce e Helena Ignez, mulheres tão importantes para o nosso cinema e que parecem representar ali o que o filme de fato têm o que contar.
Calma
Direção: Rafael Simões (RJ)
Eleito melhor curta da Mostra Foco pelo Júri da Crítica da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, “Calma” também se ancora muito na estética. E os principais elementos trabalhados são o som e o tempo. O som para evidenciar o caos do mundo no extracampo. Em contraste ao caos pelo barulho, tem-se planos estendidos ao máximo em tempo, através de um ritmo bem lento. Um agora que não se desfaz, se perpetua. Não há passado, nem futuro, só constatação da decadência. Os corpos e espaços estão abandonados, inertes. Quando há algum movimento, como na longa sequência em que uma mulher sobe um corredor que parece sem fim, o movimento é tão prolongado e repetitivo que se torna também neutro, parece não levar a lugar nenhum.
Eu me pergunto se isso dialoga de fato com os personagens retratados, os marginalizados, periféricos. Ou se dialoga muito mais com um desejo de representação do olhar de quem está de fora dessa realidade, só a observar. Um tipo de espectador que vê nesses sujeitos somente impotência, pessimismo, falta de voz e ação. Aproveito para citar um trecho do texto de Bruno Galindo para o site Cine Festivais (vale a pena ler na íntegra) em que ele diz: “Se o olhar hegemônico produz imagens que não mais interessam, até que ponto formular respostas estéticas assimiláveis a este mesmo olhar faz sentido?” Uma pergunta bastante intrigante e que se conecta fortemente ao incômodo que senti ao final do filme.