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A espetacularização do encontro em “Os Amantes de Pont-Neuf”

Os Amantes de Pont-Neuf
[Esta crítica traz detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

por Leandro Luz

Verborragia e poesia marcam o início da carreira de Leos Carax, tal qual sua imposição por trabalhar os códigos de linguagem comumente associados à Nouvelle Vague. “Boy Meets Girl” (1984) e “Sangue Ruim” (1986) nitidamente pertencem ao cerco das obras de um diretor jovem em início de carreira. E não digo isto como um demérito. Na ocasião da feitura de seu debut, Carax, então com apenas 24 anos de idade, já apresentava extrema habilidade ao traçar uma narrativa bastante coesa e consistente. Os personagens melancólicos e misteriosos estão inseridos em tramas simples, mas tão difíceis de decodificar em seus detalhes e sutilezas que chegam a criar, num primeiro momento, uma distância intermitente entre obra e espectador.

“Os Amantes de Pont-Neuf” (1991) aponta outros caminhos pelos quais ele marchará a partir de então, permeando o pouco assistido – e menos ainda compreendido – “Pola X” (1999) até chegar, 13 anos depois, em “Holy Motors” (2012), um divisor de águas em sua carreira (por mais que ainda não saibamos exatamente o que virá daqui pra frente), que divide crítica e público até hoje. Mais focado e paradoxalmente mais nebuloso em termos estruturais do que seus antecessores, o terceiro longa-metragem da carreira de seu realizador traz uma maior concentração e apuração de ideias tanto em sua tratativa estética quanto na própria história contada.

Acompanhamos a trajetória de duas pessoas que se encontram em situação de rua. Alex (Denis Lavant) nos é apresentado de forma brutal: bêbado, caminha a esmo pelas ruas de uma Paris incomum aos olhos quase sempre turísticos do espectador (e principalmente, o que é ainda mais grave, dos cineastas); sofre um acidente e é levado para um abrigo da cidade. A câmera registra o ambiente degradante do local, sugerindo um caráter de denúncia que o filme irá abandonar de vez logo a partir da cena seguinte, o que torna o momento um tanto quanto deslocado, ao menos em termos de tom, do restante da obra. Não fosse a transgressão do desenho sonoro e o artesanato da montagem, esta cena inicial poderia ser encarada com uma intenção quase naturalista. Surpreendentemente – mais por esta introdução aflita, menos pelo histórico de seu diretor –, o tom lírico que irá embalar a conexão entre Alex e Anna (Juliette Binoche) é adotado com maestria. Conhecemos Anna de relance, ainda na primeira sequência (ela salva Alex de um provável acidente ainda pior do que o que acabara de sofrer). Logo descobrimos que sua visão está sendo progressivamente perdida. Esta doença, por mais que jamais ganhe protagonismo na trama, é o pano de fundo necessário para que entendamos com mais profundidade os dramas dos personagens e nos sensibilizemos com ela – tal qual Alex, apesar de sua empatia ser constantemente sobreposta pelos seus próprios interesses; na realidade, é a conexão entre os dois que dita o andamento da história e as escolhas narrativas dentro do filme.

A opção por ambientar este relacionamento na ponte mais antiga que atravessa o rio Sena, em Paris, diz muito sobre a ambição de Carax e solidifica o seu amor pela cidade que passou toda sua vida. Michel Vandestien, designer de produção, foi o responsável por recriar a Pont-Neuf em estúdio, uma vez que interdita-la por três meses estava fora de cogitação em termos de produção. Em contrapartida, o dinheiro que precisou ser gasto para que o set de filmagem acomodasse todas as características necessárias para as gravações acarretou em uma grave crise financeira, causando diversas interrupções no trabalho da equipe e uma sensação de incerteza quanto à finalização do projeto. Aos trancos e barrancos, Carax consegue terminar o filme a tempo do seu lançamento no Festival de Cannes, em 1991.

A propósito do seu ano de lançamento, tenho profundo apego por filmes de 1991 simplesmente por este ser o ano em que nasci. Bons ou ruins, encantadores ou insossos, subversivos ou dóceis, esses filmes sempre acabam me interessando por alguma razão imprecisa. Me recordo imediatamente de “A Dupla Vida de Véronique”, de Krysztof Kieslowski, e “Brinquedo Assassino 3”, de Jack Bender – ambos situados na base estrutural que condicionou e condiciona ainda hoje a minha fascinação pelo cinema. De todo modo, o início da década de 1990 foi marcado por uma veia pop e um retorno heterodoxo e antinômico ao clássico: Quentin Tarantino, Richard Linklater, Danny Boyle, Gus Van Sant, Paul Thomas Anderson e muitos outros diretores se tornaram conhecidos do público, em menor ou maior grau; medalhões como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, Clint Eastwood e Robert Altman lançam obras aclamadas; no Brasil, uma década marcada por extremos – no início, raríssimas produções em virtude da extinção da Embrafilme pelo governo Collor (para ilustrar, somente três filmes foram lançados comercialmente no país em 1992), e logo depois o boom da chamada Retomada, com “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (1995), de Carla Camurati, estampando as bandeiras esperançosas para o cinema nacional; enfim, 1991 é o ano de “O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final” – o que mais poderia ser dito?

Talvez passar algumas horas assistindo aos filmes e escrevendo sobre o cinema de Leos Carax seja considerado hoje algo ultrapassado. Na realidade, o diretor francês pouco teve seu reconhecimento merecido, por parte de crítica e público, ao longo de toda sua carreira. “Os Amantes de Pont-Neuf” certamente evidencia tal injustiça. Em seu texto para a Cinética publicado em abril de 2010, Filipe Furtado propõe um breve revisionismo da carreira do diretor e afirma que “[Os Amantes…] é um dos filmes mais influentes do começo dos anos 90, mas sua influência pouco foi observada por conta de uma associação crítica fácil criada anos antes. E este é um crime de uma crítica muito mais publicitária do que qualquer imagem da obra de Carax”.

Passado, presente e futuro estão sempre em cheque para Alex e Anna. Ele vive sem qualquer tipo de crença numa possibilidade alternativa de vida. Para ele, passado e futuro praticamente são inexistentes. Já Anna situa-se no entroncamento entre a vida que um dia fora sua (o amante que já não mais a pertence – a morte inventada põe fim na possibilidade do exercício deste amor, mas jamais encerra a lembrança) e o futuro cruel que a aguarda. O encontro entre o “agora” dessas duas figuras distintas é registrado pela câmera xereta de Carax, ora observando os dois corpos correndo nus numa praia deserta, ora exacerbando o lirismo desta aproximação com os fogos de artifício que iluminam e sonorizam a ponte degenerada. Lavant e Binoche potencializam um o corpo do outro. Amor, sofrimento e obsessão são temas que permeiam cada fotograma da obra, que poderia muito bem cair num registro fatalista e abalizador que arruinaria tudo, mas ao invés disso se ergue como uma das coisas mais belas e enternecedoras que já pude experienciar.

A figura de Hans (Klaus-Michael Grüber), amigo de Alex, representa bem toda essa sutileza buscada por Carax. Um brutamontes que protagoniza a cena mais delicada dentre todas (a visita ao museu). Sua morte ratifica este conceito: num plano curto e único o vemos cair no Sena. Ninguém o nota e sua falta não é sentida. O mundo é deveras cruel para que assimilemos seus labirintos. A iminência da morte conduz também à possibilidade do reencontro – felizmente não privado aos personagens. O desfecho, longe de se adequar à noção de um romance tradicional, é permeado tanto pelas dores, intensificadas, percebidas nos rostos mais polidos de Alex e de Anna, quanto pela reconciliação dele com o passado e dela com o presente – de ambos com o futuro, que desponta no horizonte e flui através da mesma água e do mesmo rio que outrora os enclausuraram. ■

“Os Amantes de Pont-Neuf” está disponível em DVD.

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