"Sangue Ruim" (Mauvais sang, 1986)
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“Sangue Ruim”: a beleza melancólica de uma juventude

por Pedro Tobias

Na Paris de “Sangue Ruim” (Mauvais Sang, no título original em francês) o vírus STBO está matando rapidamente a população. Ele ataca amantes que transam sem sentimento. Na vida real, o poeta e escritor Arthur Rimbaud e seu companheiro, o também poeta Paul Verlaine, foram acometidos pela doença sob a forma de um tiro de uma pistola Lefaucheux.

Durante uma das diversas brigas do casal (que morou junto em Londres entre 1871 e 1873), Verlaine disparou duas vezes contra seu companheiro, atingindo-o no pulso. Após o incidente, Rimbaud voltou para sua casa em Charleville-Mézières (França) e publicou o poema em prosa “Uma Estação no Inferno”, cujas nove partes exploram temas relacionados a sonhos e terras distantes, desejo de solidão e sede de conhecimento, o passado ancestral e a busca pelo desconhecido.



A segunda parte do poema, chamada de “Mau Sangue” (Mauvais Sang), inspirou o cineasta Leos Carax, então com apenas 25 anos, a produzir “Sangue Ruim”, seu segundo filme. A inspiração não parou no título. Ao deixar a namorada Lise (Julie Delpy) para se juntar à gangue do pai falecido, Alex (Denis Lavant) se despede com as seguintes palavras:

“Você é a minha arma.

Não esquecida, mas abandonada na cena do crime.

Tomara que se apaguem de você minhas digitais.”

Alex, aliás, aparece mais uma vez como o alter ego de Carax (cujo nome de batismo é Alexandre). Se em “Boy Meets Girl” Lavant interpretava um jovem Alex viciado em primeiras vezes e em busca de um amor romântico, aqui ele se apresenta como alguém em busca de sentido, de uma jornada verdadeiramente sua. Essa jornada surge através de Marc (Michel Piccoli) e Hans (Hans Meyer), que o convidam para roubar um antídoto ainda em fase de testes para o STBO.

É a partir desse cenário, apontando para um filme de assalto, que Carax trabalha seu cinema poético e, até certo ponto, onírico. Não importa o ato de roubar o antídoto, mas (tentar) entender de que formas o amor se manifesta e como o encaramos.

É possível pegar na letra de “Modern Love” uma interpretação que nos aproxima da psique de Alex (Lavant/Carax). O pós-modernismo de Bowie se apresenta na rejeição tanto do amor romântico quanto do “amor moderno”. Quando abandona Lise, Alex parece superar o romance entre eles (“…lying in the rain”), mas é incapaz de verdadeiramente esquecê-la (“…never wave bye-bye”), mentindo sobretudo para si mesmo.

Essa ambiguidade parece atormenta-lo tanto quanto a “barriga de cimento” que o acompanha desde a prisão e que só é superada brevemente pelo desejo de correr, de fugir. Esse desejo encontra vazão na melodia de Modern Love, possivelmente em uma das sequências mais importantes do cinema contemporâneo. Ali, através da liberalização de seu corpo por meio do movimento, Lavant expurga os martírios de seu personagem mesmo que brevemente.

Infelizmente, Alex não pode simplesmente correr para longe de seus próprios problemas. Ele acaba se apaixonando pela mulher de Marc, como na lenda de Tristão e Isolda. Percebendo isso ele de certa forma abraça seu destino trágico e inevitável, ainda sim permitindo entregar-se ao que sente.

Felipe Medeiros, em artigo para a Foco – Revista de Cinema, classifica o amor retratado nos filmes de Carax “como uma via de libertação do eu pulverizado, recluso, de modo que através de suas tensões amorosas, ímpetos, a vida adquire mais urgência, febre, verdade”. Se a relação entre Alex e Lise pode ser definida dentro do romantismo sobre o qual Bowie falava, Anna (Juliette Binoche) surge como a efígie do modern love, a representação da beleza melancólica de uma juventude abraçada por Carax nessa fase inicial da carreira.

Como mencionado acima, o foco do diretor é menos no assalto e mais na dinâmica da relação entre Alex e Anna (e Lise). Aqui a reverência a Godard se manifesta mais intensamente, sobretudo se pensarmos em Acossado. Assim como Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg citando Faulkner na cama, é a partir de um balé de diálogos que Lavant e Binoche se expõem um ao outro durante boa parte do filme. Aliás, algo semelhante já havia sido feito por Carax em “Boy Meets Girl”.

Consciente de seu papel, Alex segue à risca a tragédia de Tristão. Ele falha em entregar a fórmula (o antídoto) ao rei Marc (Piccoli) e é salvo por Isolda das Mãos Alvas (Delpy), seu anjo de motocicleta, sua petite Lise (uma singela homenagem de Carax ao filme homônimo de Jean Grémillon).

Sua morte liberta ambas Anna e Lise, cumprindo assim um dos trechos do já citado poema de Rimbaud:

“O canto razoável dos amigos eleva-se do navio salvador: é o amor divino.

Dois amores! Posso morrer de amor terrestre, morrer de sacrifício.

Deixei almas cuja pena crescerá com minha partida!

Escolheste-me entre náufragos; os que ficam são meus amigos?

Salvei-os!”

E assim, livre de qualquer amarra, Anna faz o que Alex sempre quis: ela corre… Não, ela voa. Como um pássaro prestes a bater as asas, ela abre os braços e parte rumo ao inexplorado. ■

“Sangue Ruim” está disponível em DVD.