Em tempos em que o silêncio é uma condição rara, e tendo em vista que a poluição sonora atinge níveis cada vez mais absurdos nas metrópoles, “Um Lugar Silencioso” representa um ato de coragem. Não apenas por trazer o silêncio (ou pelo menos a menor quantidade ruídos possível) como fator determinante para a sobrevivência de seus personagens, mas pelo próprio lugar em que o filme está colocado. Afinal, salas de cinema também sofrem com poluição sonora: barulho de gente conversando, comendo, celular tocando etc. Quem nunca foi vítima de sons desagradáveis no escuro, durante a projeção? Desse modo, o longa-metragem praticamente propõe um desafio extra ao público, que também se torna (ou deveria se tornar) vigilante para que nenhum mal-educado estrague a experiência proposta na tela e nas caixas de som.
E que ousadia a de John Krasinski. Mais conhecido por seu trabalho como ator, principalmente em comédias (a série de sucesso “The Office” e filmes melosos como “O Noivo da Minha Melhor Amiga” e “Simplesmente Complicado”), ele está em seu terceiro longa como diretor, mas o primeiro no gênero horror (antes dirigiu “Brief Interviews with Hideous Men” e “Família Hollar”, ambos também comédias). Como ator, ele também nunca havia trabalhado com horror ou sequer em um thriller. O mais perto que se chega disso em sua filmografia é em produções como “Detroit em Rebelião” ou “13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi”, mas esses são filmes em que há aspectos de suspense, e não um mergulho de cabeça.
Por causa desse natural estranhamento do público, acostumado a ver Krasinski em sua zona de conforto, pode haver um afastamento inicial quando ele surge na tela. Mas logo essa primeira reação se dissipa quando percebemos a expressão de completa tensão nos rostos dele e de Emily Blunt (um casal também na vida real) diante do perigo constante que os ronda e, principalmente, coloca em risco a vida dos filhos. Blunt, por sinal, é o grande destaque do enxuto elenco, sendo protagonista daquela que podemos considerar a principal sequência de suspense do filme: um momento crucial para sua personagem, que tem que lidar com duas situações-limites simultâneas, uma para não morrer e outra para garantir o início de uma nova vida. E deve-se aqui fazer um elogio à outra atriz do longa, a novata Millicent Simmonds, que interpreta a filha primogênita. A jovem (que estreou nas telas no recente “Sem Fôlego”, de Todd Haynes) é muito sensível ao introjetar em sua personagem o enorme peso da culpa que sente por um trauma familiar, ao mesmo tempo em que demonstra ser esperta e corajosa, ganhando a confiança dos pais para se virar sozinha quando preciso.
Ao bem da verdade, Krasinski merece muito mais elogios pelo trabalho atrás das câmeras do que a frente dela. Não sabemos exatamente como começou e nem o quê ou quem provoca o perigo que ronda a família na tela. E isso porque Krasinski, como bom aluno, acerta a lição básica do horror: “Não mostre o monstro.” Não temos vista completa da(s) criatura(s) até o ato final, decisão coerente uma vez que a narrativa transcorre pelo ponto de vista das presas, que, além de fazerem pouco barulho para não atrair a morte certa, tratam de se esconder a todo tempo para sobreviver. Quando o monstro finalmente fica frente a frente com alguém (conosco), o enquadramento e a duração dos planos recompensam a espera e satisfazem a curiosidade, apesar do design ser derivativo e combinar aspectos de vários monstros que já vimos antes, dos Xenomorfos de “Alien” aos Demogorgons de “Stranger Things”.
E de onde os monstros do filme surgiram? Quando e como começaram a caçar as pessoas? Não fornecer respostas a essas indagações é outra lição aprendida por Krasinski. As únicas informações que nos são dadas vêm de uma contagem de dias (que aparece em cartelas que separam os primeiros atos), jornais espalhados pelas ruas com manchetes de alerta e o próprio cenário de total desolação em que a trama se passa, típico de um filme de zumbi. Daí se pode inferir possíveis causas para a destruição. Teria o planeta se tornado tão absurdamente barulhento que provocou uma invasão de alienígenas atraídos pela propagação de sinais sonoros pelo espaço? Poderiam ser esses monstros alguma espécie trazida de fora por alguma missão humana em outro mundo? Teria sido aberto algum tipo de portal interdimensional? Não se sabe e não importa muito saber. Talvez os roteiristas Bryan Woods e Scott Beck (autores do argumento e coescritores do script junto com Krasinski) tenham uma resposta, que podem escolher revelar ou manter escondida. E talvez até por preferirem escondê-la, eles tenham recusado a proposta de tornar o filme parte da franquia “Cloverfield” (o que realmente não era necessário e diminuiria a originalidade da ideia da dupla, que trabalha junta já há três longas, todos inéditos no Brasil).
Na maior parte do tempo, Krasinski acerta a mão, ainda mais sendo muito bem assessorado pela talentosa diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen (“A Caça”, “Life: Um Retrato de James Dean” e “Um Limite Entre Nós”) e pelo experiente montador Christopher Tellefsen (indicado ao Oscar por “Moneyball” e que trabalhou com M. Night Shyamalan em “A Vila”, filme e cineasta com o qual este “Um Lugar Silencioso” dialoga bastante). A sintonia da equipe é visível na construção dos set pieces, em especial na sequência com Blunt mencionada parágrafos acima e que envolve o porão da casa, além do momento em que os irmãos se veem em apuros na torre de secagem de grãos da fazenda.
Entretanto, por mais que demonstre ser um aluno aplicado, daqueles que fazem questão de ser o “primeiro da turma”, Krasinski parece ter receio de matar aula e não burla algumas regras, o que teria feito muito bem ao longa. É o caso do uso da música não diegética. Por mais que as boas composições de Marco Beltrami (profissional conceituado, duas vezes indicado ao Oscar, por “Guerra ao Terror” e “Os Indomáveis”) contribuam para a criação da atmosfera de tensão, elas seguem uma convenção do gênero abraçada por Krasinski, o que acaba atrapalhando um pouco as coisas em um filme que, a princípio, busca justamente fugir da curva e propor ao espectador uma imersão sonora pelo silêncio. Seria tão mais interessante se tivéssemos uma versão do longa sem música ou, pelo menos, que deixasse apenas a única música diegética, a balada “Harvest Moon”, de Neil Young (esta sim muito bem utilizada ao tomar os alto-falantes na cena em que o nosso “ponto de escuta” passa a ser o de Krasinski, quando Blunt coloca nele os fones de ouvido que usava). Quem sabe no DVD? É, aliás, perfeitamente possível que a ideia dos realizadores fosse a de fazer um filme sem trilha instrumental, mas o estúdio vetou – afinal de contas, estamos falando de uma produção da Platinum Dunes, que tem como sócios-fundadores o “trio do barulho” Michael Bay, Andrew Form e Brad Fuller.
Seja como for, “Um Lugar Silencioso” surge como grata surpresa e revela uma interessante faceta de seu diretor, tal como ocorreu há três anos com Joel Edgerton, outro ator com ótima estreia na direção de um horror, com “O Presente”. Mas talvez seja cedo para sabermos se Krasinski ou Edgerton tomaram gosto e voltarão ao gênero. Pelo menos, diante do sucesso que obtiveram, eles não correm o risco de seguir o exemplo de Charles Laughton com seu solitário crédito por “O Mensageiro do Diabo” (1955), hoje um clássico, mas à época do lançamento execrado pela crítica e pelo público a ponto de fazer Laughton desistir de continuar a carreira como cineasta. ■
“Um Lugar Silencioso” está em cartaz nos cinemas.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.