por Leandro Luz
“Nasceu em 92 a neta bastarda dos Mello”. Assim começa “A Máquina”, sexta faixa de um dos discos mais inquietantes e urgentes da música brasileira contemporânea. Em seu “Perdida” (2014), Paola Rodrigues lida com questões tão subjetivas quanto universais, abordando temas que flutuam entre as aspirações, medos e desejos de uma garota solitária em Minas Gerais e angústias oriundas de um país inteiro.
Associar os filmes de Affonso Uchôa, João Dumans e Maria Augusta Ramos à produção de uma música experimental feita em Belo Horizonte pelo coletivo Geração Perdida de Minas Gerais (apropriação um tanto quanto pretensiosa, a propósito da “Lost Generation” de Gertrude Stein, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e cia.) talvez soe um tanto inusitado, mas tenho convicção de que pode ser algo benéfico para entendermos alguns dos problemas estruturais pelos quais estamos passando hoje e, no mínimo, gerar uma reflexão proveitosa sobre como a arte brasileira em plena década de 2010 lida com as questões políticas da sociedade.
Historicamente, música, cinema e política no Brasil estiveram constantemente em diálogo. De forma mais escancarada, as chanchadas da Atlântida, produzidas em larga escala num período pré-ditadura militar, eram responsáveis por estabelecer um imaginário racial e um senso de brasilidade diante do grande público, ao passo que dialogavam com a própria cultura estrangeira (sobretudo a estadunidense) e o momento político do mundo – duas obras do diretor Carlos Manga, “Nem Sansão Nem Dalila” (1954) e “O Homem do Sputnik” (1959), são grandes exemplos dessa relação; as próprias características fundamentais do gênero evidenciavam a associação direta entre a música e o cinema.
1964 foi o ano do golpe militar que derrubou o governo de João Goulart, o então presidente democraticamente eleito, e também não passou ileso diante das manifestações artísticas: “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é lançado três meses após a instauração do regime, e sua trilha sonora, composta numa parceria entre o próprio Glauber e Sérgio Ricardo, é um marco importantíssimo. Ainda neste mesmo ano a música popular brasileira fervilhava, mesmo com um engajamento menos evidente do que viria a ser poucos anos mais tarde – “a sorrir / eu pretendo levar a vida / pois chorando / eu vi a mocidade perdida”, entoa Nara Leão em seu disco de estreia; “finda a tempestade / o sol nascerá”, os versos da composição de Cartola e Elton Medeiros completam a canção com um otimismo um tanto quanto anacrônico.
1968 foi outro grande marco histórico fundamental para pensarmos a relação entre a política e as manifestações artísticas e culturais no Brasil. No mesmo ano em que o AI-5 é decretado, são colocados no mundo filmes como “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla, e “O Homem Que Comprou o Mundo”, de Eduardo Coutinho – este, um eco fortíssimo de “Terra em Transe”, lançado no ano anterior – e discos como “Tropicália ou Panis et Circensis” e “Chico Buarque de Hollanda Vol. 3”, ambos um reflexo preciso do momento político do país – “Miserere Nobis”, “Parque Industrial”, “Funeral de um Lavrador” e “Roda-Viva” são apenas quatro exemplos de como confrontar, em canções, a mais cruel e revoltante mutilação do pensamento e da liberdade artística.
Entre 1984 e 1988, desde o movimento Diretas Já até a promulgação da Constituição que nos pauta enquanto cidadãos hoje (ainda pauta?), há outros grandes exemplos de interseções entre o cinema e a música. “Cabra Marcado para Morrer”, certamente um dos filmes mais importantes da história do nosso cinema, é finalmente concluído e lançado; ao mesmo tempo, o rock brasileiro vinha com toda força trazendo à tona questões já levantadas pelas “músicas de protesto” nas décadas de 1960 e 1970, renovando o espírito de luta diante de uma juventude ainda muito machucada pelos rumos políticos do país – articular uma música como “Fábrica”, da Legião Urbana, ao “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, como o fizeram Raquel Gomes e Renato Silveira no podcast cinematório café dedicado ao filme, portanto, é absolutamente preciso.
Voltando à música da Paola e, portanto, ao presente, ou pelo menos a partir das manifestações de junho de 2013 ou das eleições presidenciais de 2014, fica evidente que o Brasil enfrenta uma de suas crises políticas mais graves. A polarização dos discursos – talvez tão perigosa e imensa como na década de 1950, quando ainda reinavam as chanchadas da Atlântida – nos coloca diante de um impasse: qual a saída entre a parte que nos ensinaram a ser e a parte genuína? Há uma forma de nos conciliarmos com o nosso próprio passado histórico? “Arábia” e “O Processo” talvez nos ensinem que sim, há uma forma, mesmo que ela ainda esteja imprecisa e desforme, esfumaçada, escondida entre os escombros da fábrica, literal e metafórica, que mantém a máquina em funcionamento.
“nascida no mês de agosto, logo soube quem era e quem é que deveria ser / mesmo antes que pudesse pensar, mesmo antes que pudesse olhar e ver que o conceito fechado que lhe criaram começava a ser absorvido / e então já não sabia qual era a parte que lhe ensinaram a ser e qual era a parte genuína”
É um privilégio termos dois filmes tão importantes e impactantes como esses ao mesmo tempo circulando pelos cinemas do Brasil (mesmo que dentro de um nicho super restrito, infelizmente). O mais curioso é que ambos partem de premissas completamente opostas, caminham por terrenos dos mais variados para lidar com os mesmos temas (o indivíduo perante o sistema; a fragilidade das instituições) e desembocam em mares absolutamente parecidos. “Arábia” parte de uma história ficcional, se veste dos códigos de linguagem por vezes muito clássicos e culmina na representação crua do trabalhador brasileiro. “O Processo”, por sua vez, é uma obra documental interessada em um fato histórico muito específico, mas que acaba se apropriando de uma linguagem muito presente em filmes ficcionais. O fato de querer proporcionar ao espectador uma experiência repleta de sensações (suspense, angústia e alívio cômico) orienta Maria Augusta Ramos a todo instante.
Aristides de Sousa é Cristiano, um homem comum que vive dentro de uma lógica esmagadora: o trabalho braçal é sua única alternativa (sobretudo após o crime ter se provado um equívoco em sua vida). Dilma Rousseff foi a 36ª presidenta do Brasil, a primeira mulher, democraticamente eleita e reeleita, e afastada do cargo através de um processo de impeachment em 2016. O que esses dois personagens poderiam ter em comum? Seria o fato de ambos terem sido presos em determinado momento de suas vidas? Ou de ambos se encontrarem, ao final dos respectivos filmes que representam, absolutamente amordaçados e imobilizados por um sistema corrupto e desleal?
“mas o mais engraçado é que tudo muda e ela também mudava / e então a decepção do imprevisível / pois a máquina é sempre programada pra permanecer / os mesmo horários, os mesmo empregos e os mesmos salários / as mesmas férias na Bahia, o mesmo carnaval e os mesmos fracassos”
A primeira cena de um filme costuma exercer uma função peculiar e gerar um sentimento ambíguo no espectador. O primeiro contato com um universo totalmente novo e misterioso é ao mesmo tempo revelador e intransponível; é a chave que supostamente abrirá todas as portas e ao mesmo tempo o maior enigma em si. Falar sobre o início de “Arábia” e “O Processo”, por sua vez, nos traz uma percepção ainda mais complexa, sobretudo pela inteligência de seus realizadores e pela consciência justamente do que expus acima. Affonso Uchôa e João Dumans não procuram provar nenhuma tese em “Arábia”. Seu filme é sobre um personagem. Ou, o que talvez seja a grande chave para entender a lógica estética empregada, sobre como um personagem enxerga a vida e a história de outro. No longo prólogo, antes mesmo que o título da obra irrompa na tela, acompanhamos André (Murilo Caliari), um adolescente que vive na cidade de Ouro Preto às margens de uma fábrica barulhenta e opressora nas cinzas que insiste em espalhar pelo ar e pelas janelas das casas à sua volta. Para quem, como eu, já havia assistido ao filme anterior de Uchôa, “A Vizinhança do Tigre” (2016), o estranhamento é inevitável: estariam aquelas imagens belas e grandiosas, o plano-sequência de um garoto branco andando de bicicleta pela estrada, o blues internacional evocativo na trilha sonora, adequados ao filme que esperávamos ver? – lembro que cheguei mesmo a cogitar ter entrado na sessão errada. Mais tarde somos retirados desse prólogo e jogados no universo (e através das palavras) de Cristiano: sua jornada em busca de trabalho e de algum sentido para continuar existindo (“vida é trabalho”, tal qual cantava Gonzaguinha). Já a primeira cena de “O Processo” revela e embaralha sua própria lógica conceitual com uma narrativa que mais parece uma partida de final de campeonato: os manifestantes em Brasília não estão contra ou a favor de um processo de impeachment, mas torcem inveterados pelo seu time do coração; os cantos, os xingamentos, os bandeirões, a fumaça, a represália policial; o conceito de uma partida de futebol, aliás, é essencial para Maria Augusta Ramos ao longo de toda sua narrativa: há o suspense de quem levará o título, a bola na trave, a defesa espetacular do goleiro, o pênalti marcado injustamente, o gol anulado, o drible desconcertante e a falta desleal; todos os ingredientes estão ali à nossa disposição.
Sair da sessão de “O Processo” – e o título kafkaniano ainda dá conta de muitas metáforas possíveis – é como sair de um pesadelo: este que ainda estamos vivendo; este que parece não ter fim. Todos os elementos do filme provocam intencionalmente esse desgaste físico e emocional (a montagem implacável, a câmera que persegue incansavelmente seus personagens, a não intervenção efetiva da diretora diante do objeto filmado, a ausência de trilha sonora reforçando qualquer ideia ou emoção), e não há stand up possível de nenhuma Janaína Paschoal que provoque alivio cômico suficiente para nos tirar da completa depressão em que nos encontramos já na primeira hora de material. Em “Arábia”, a sensação é um pouco diferente. A cabeça também pesa, o silêncio ensurdecedor da sequência final perdura por muito tempo e a sensação desesperadora de impotência talvez seja ainda maior. A câmera se aproxima aos poucos de Cristiano, deitado ao lado de uma fogueira, sozinho, até revelar o seu rosto que é o espelho do nosso; até o fade out nos colocar novamente na escuridão, em silêncio, nos obrigando a lidar com o peso em cima de nossas próprias costas; e mesmo se tivermos a sorte de ir ao cinema acompanhados ou de estar em uma sessão cheia, ali também nos encontramos tão sozinhos e doentes como Cristiano.
Em “Arábia”, ainda há a presença de Ana, mediada pelas memórias de Cristiano, por sua vez mediada pela imaginação de André. Ana e Cristiano se apaixonam, compartilham momentos incríveis e se separam. Cristiano escreve suas memórias por causa de um grupo de teatro que participa na fábrica em Ouro Preto, mas relata que é apenas por causa de Ana que consegue colocar caneta e papel novamente nas mãos. A importância que se atribui à memória no filme é colossal (“não éramos mais um casal, éramos a lembrança de um casal”, escreve Cristiano sobre o relacionamento dos dois). Todos nós podemos nos relacionar em algum nível com essa frase. Em “O Processo”, a memória também é fundamental, pois é na interlocução entre o que nos lembramos dos fatos e o que nos mostra o cuidadoso trabalho de montagem realizado por Karen Akerman que o filme revela-se potente e necessário.
“quanto mais você luta, mais você se frustra e mais você repele / quanto mais você aceita, mais você se sujeita e mais você destrói / quanto mais você se fecha, mais você se quebra e mais você se fere / quanto mais você chora, mais você implora e mais você corrói”
A forma um tanto quanto bagunçada que adotei para falar dessas duas obras talvez faça algum sentido quando pensamos o quanto elas nos atordoam. É doloroso e inquietante observar como esses dois filmes tão diferentes podem dialogar tanto entre si e com o momento atual do Brasil. Para além de “A Máquina”, que me propus a dispor, mesmo que de forma fragmentada, ao longo de todo este texto, há outra música que também dialoga muito diretamente com esses dois filmes. “O Brasil Quer Mais”, da Lupe de Lupe (banda também integrante da Geração Perdida de Minas Gerais), lida de forma frontal com o imaginário político que se manifesta e se prolifera nas redes sociais hoje. Em um de seus versos, por exemplo, Brauer diz: “infelizmente não é todo mundo que tem o privilégio de ficar em cima do muro”. Maria Augusta Ramos talvez até tenha o privilégio de ficar em cima do muro, mas sua coragem se manifesta principalmente pela opção de jamais esconder para qual time torce, no final das contas, e para qual torcida seu filme foi feito – o que nos leva, inclusive, a questionar se a torcida adversária se dará ao luxo de comprar os ingressos para esta partida. Em outro verso: “infelizmente não é possível resolver os problemas do país com uma música”. Infelizmente. Nem com uma música, nem com um filme. Ou dois. Mas é como nos conta o catador de mexericas em “Arábia”: um “doguinho” não pode enfrentar um “dogão”, mas junta mil “doguinhos” para ver se o “dogão” dá conta de enfrentar. Nos restam a dor e a angústia de estarmos vivos. Para lutar, para cantar, para fazer filmes, para escrever, para carregar uma saca de cimento num caminhão (ou de ração para peixe, que é bem mais leve), para apertar o parafuso numa fábrica, para fazer o pão ou abrir a banca de jornal todas as manhãs. Não tem saída. Você se torna parte da máquina. Você se torna parte da máquina.
Esse ar deixou minha vista cansada. ■
“O Processo” está em cartaz nos cinemas. “Arábia” segue em algumas salas, mas também está disponível em streaming.