Sob uma atmosfera que remonta ao bucolismo com cenas de transição ilustradas por paisagens limpas, minimalistas e que ressaltam, junto ao preto e branco, o concreto da cidade – luzes e sombras dançam na tela provocando cenas aclimatadas por suspenses, principalmente, utilizando o sombreamento de silhuetas humanas, em um estilo anteriormente marcado pelo clássico “M, O Vampiro de Dusseldorf” (1931), de Fritz Lang.
De início, tilintes encaixados no cenário acima descrito expressam uma ambientação daquilo que transita entre o presente, o passado, a ilusão do que poderia ser, do que se foi e do que se é. Aliam-se a eles uma dispersão de sons ambientes abafados, incluindo gotejamentos e ruídos, e uma presença musical que nos remete ao núcleo do filme: gangues. Assim, conhecemos o personagem principal de “O Selvagem da Motocicleta” (Rumble Fish, EUA, 1983), Rusty James (Matt Dillon), apresentado com uma postura de liderança, o mocinho que é, de fato, um bad boy, em uma cena repleta de atuações “coreografadas” e ritmadas conforme a música de fundo, teatrais. Porém, quando uma das personagens questiona a Rusty o paradeiro de seu irmão (Mickey Rourke), o clima é quebrado, a música é cortada. Assim, percebemos que o filme dirigido por Francis Ford Coppola irá nos contar uma trama bem mais complexa do que uma história entre gangues do subúrbio.
Na verdade, o filme retrata a vida de Rusty James, um jovem que se envolve com as histórias sobre gangues de um tempo passado, cujo principal representante fora seu irmão mais velho, o Selvagem da Motocicleta – desaparecido há algum tempo. Rusty deseja o retorno das gangues e principalmente aspira à posição de “líder” de uma delas. Em razão disso, torna-se impossível desassociar a trama do filme da realidade psicológica das personagens. Apesar de Rusty ter em mente que a realidade das gangues pode ser redescoberta, o presente concreto vivenciado por ele, paulatinamente dá indícios ao espectador de que as coisas não funcionarão desta forma ideal. A começar com o círculo de amizades da personagem: não são rapazes absolutamente envolvidos com a ideia de formar gangues, cada um tem sua personalidade e, aparentemente, se reconhecem em “tribos” diversas. Seu melhor amigo, por exemplo, é um estereótipo de “nerd” que, em certo diálogo, inclusive, assertivamente aponta que Rusty nunca será como o irmão. Nesse sentido, decorrem muitas cenas nas quais as amizades de Rusty caçoam de sua aspiração de representar uma liderança que nunca teve ou seria capaz de ter, por ser considerado um indivíduo “não esperto”.
Além disso, Rusty é apaixonado por Patty (Diane Lane), mas a imagem da mulher neste filme é bastante diferenciada da presente em filmes do gênero, como em “Juventude Transviada” (1955), de Nicholas Ray, no qual os bad boys representavam o ápice da masculinidade e “enfeitiçavam” o sexo oposto. Pelo contrário, Patty mostra-se muito firme com relação às investidas de Rusty. Ainda assim, demonstra sentimentos por ele, dando oportunidades, e ele mostra-se transtornado ao ter que escolher entre continuar o momento de romance com Patty e sair para uma “briga” marcada no início do filme. Mais uma demonstração de como há um conflito de percepções e valorizações do passado que o personagem deseja retomar ao mesmo tempo em que deseja vivenciar seu presente. No cenário da briga em questão, a primeira manifestação de Rusty é sobre “onde estaria a galera”, ou seja, os espectadores. Ele quer ser alguém reconhecido por sua capacidade de retomar a virilidade das brigas. Novamente, um de seus amigos desmonta-o, quando manifesta a opinião irônica de que ele é um líder, mas que se liga às pessoas.
A cena da briga entre “gangues” é bastante icônica e se assemelha à do início do filme: efeitos basicamente em ritmo coreografado. E é neste ponto que conhecemos, repentinamente, o Selvagem da Motocicleta: alguém de faceta comum, com um perfil absolutamente oposto ao de Rusty. Esta é uma parte importante para entender a intenção de Coppola na transformação para película do livro “Rumble Fish: O Selvagem da Motocicleta”, de Susan E. Hinton.
Muitas das personagens secundárias desafiam a compreensão do espectador, algumas não têm relação alguma com as personagens principais, surgindo como reveladoras de mensagens trazidas implicitamente pelo decorrer dos fatos do filme. Explico: um dono de bar, completamente aleatório, faz uma análise absolutamente relevante sobre o tempo (ora, o filme, em si, é a representação da vivência de um jovem sobre um tempo que não é o presente, vivendo à sombra do passado). O policial faz o papel de perseguidor, alguém que não consegue alcançar seu objetivo de capturar o Selvagem e acaba frustrando-se, mas que é uma figura essencial para a sequência do filme. A câmera caótica, angulando de cima para baixo, de baixo para cima, ou por diagonais, lembra muito um formato de história em quadrinhos; nas cenas em que há conflitos, movimenta-se de modo caótico.
O filme apresenta dois momentos idílicos e que aproximam o drama vivido da fantasia e da psique das personagens: Rusty tem um sonho com indicações extremas de sua sexualidade desabrochada, visualizando Patty nua na sala de aula; mais ao fim do filme, teremos uma cena de elevação espiritual da mesma personagem, na qual, “sai de seu corpo” por alguns instantes e visualiza a reação das pessoas caso morresse. Nesses cenários, os sons são abafados, revelando a ideia de “mundo próprio” das personagens.
A relação de Rusty com o irmão é complexa e revelada em seus traços mais específicos desde o momento do retorno do Selvagem. Rusty demonstra muito ciúmes com relação ao irmão, criticando um de seus affairs ostensivamente; na verdade, sabe-se que o conflito é demonstração externa de um embate psicológico próprio de Rusty: o dilema de entregar-se para um romance ou exercer a dureza necessária para ser um líder.
Por vezes, o Selvagem está nas cenas como uma figura silenciosa, que mais ouve os desabafos do irmão do que fala – e quando fala, transmite revelações importantes para o enredo. A forma com que os atores espetacularmente realizam seus papéis nos oferece a ampla visão de que Rusty toma o irmão como seu alter ego. Sua necessidade de encaixar-se no mundo parece só ser possível tendo a imagem e semelhança do Selvagem, pois admira o status-quo conquistado pelo irmão naquela cidade; ele é sua única referência, frente a desestruturação familiar, compreendida por um pai alcoólatra e uma a mãe que os abandonou.
O ritmo do filme acelera conforme as questões entre os irmãos vão sendo destrinchadas. Com uma agitação e sequência aparentemente inspirada em “Os Incompreendidos” (1959), de François Truffaut, Coppola intensifica a revelação das duras realidades do Selvagem, mitigando a utopia de Rusty. Decorrem, então, exposições muito filosóficas e intensas, através de metáforas e metalinguagem, sobre a questão do tempo e da coloração dos peixes que aparecem em um aquário de pet shop. Emblemática para tanto é a cena na qual o Selvagem é comparado com Robin Hood (justiceiro) e com o Flautista de Hamelin (liderança, perfil de influenciador), mas refuta a comparação, dizendo: “Se você quer liderar pessoas, precisa ter aonde ir”, enquanto encosta-se em um relógio. Ora, depreende-se, dessa belíssima cena, que o Selvagem é absolutamente perdido quanto a seu paradeiro, e que a questão das gangues não o excitava tanto quanto imaginava o irmão – faz parecer que sua liderança foi uma eventualidade que solidificou uma imagem quase que folclórica na cidade, quando, na realidade, como afirma seu pai em certa cena: o motoqueiro nasceu com capacidade para tudo, mas não encontrou nada que queria; queria uma razão para ir. O decorrer do tempo para ele era, ao mesmo tempo, oportunidade de descobrir o que queria fazer e frustração por nunca descobrir definitivamente; entende-se que essas foram algumas das razões de sua fuga. Seu passado o encarcerava, e portanto, não enxergava cores (daltônico), tudo em preto e branco representava a permanência de um passado marcante para os irmãos, porém, enquanto um não se satisfez com aquilo que o “rotulou”, o outro desejava absolutamente o retorno da realidade de gangues, o reforço daquele passado. Por isso, toda a obra impetra-se na monotonia dessas cores.
Os únicos elementos coloridos na obra são os, anteriormente mencionados, peixes em um pet shop. Durante as cenas finais, essa imagem metafórica é especialmente abordada. Trago aqui alguns spoilers indispensáveis para completar a análise. O Selvagem revela ao irmão que aqueles são peixes de briga (ou seja, a cor está ligada à contínua existência de uma realidade de “gangues” para aqueles peixes, que nunca estiveram absolutamente no passado). E, assim, como uma forma de aferir a situação em que se encontra o irmão, provoca: os peixes brigam com o próprio reflexo, será que eles fariam isso no rio? Traduzindo: os irmãos não passam de peixes de briga lutando contra suas próprias convicções e buscas, e que, se encontrassem a verdadeira liberdade (rio), deixariam de ser representações de membros e líderes de gangues, afinal, como selvagem, o homem é bom, mas a sociedade e tudo o que a prende, o corrompe. E continuando assim, o motoqueiro sempre reinará. Fica a curiosidade para os que pretendem saber a resolução dessa película majestosa: qual será o destino de Rusty e do Selvagem? O tempo os livrará ou condenará? O preto e branco e o colorido serão afinal desmistificados e as colorações serão alteradas?
“O Selvagem da Motocicleta” está disponível na Netflix.
Acadêmica de Direito na Universidade de São Paulo. Cinéfila, fez das salas de exibição sua segunda casa. O cinema é, junto da fotografia, a arte responsável por ensiná-la a olhar o mundo nos seus traços gerais e específicos. Em sua vivência acadêmica busca aperfeiçoar o entrelaçamento das duas áreas do conhecimento.