Pensar em “The Tale” é, a princípio, encontrar-se em uma rota curiosa. O conto. Simples e direto, tende a despertar vontade de saber mais. Contos são uma forma de transmitir ideias encalçadas naquilo que temos de lúdico, e, através deles descobrimos formas de contar histórias reais ou fictícias. Com o título acertado, envolvemo-nos em uma delas, protagonizada por Laura Dern, e magistralmente dirigida por Jennifer Fox, mesmo nome da personagem principal, o que nos revela o caráter realista deste “conto”. Trata, afinal, da vida de Jenny, que, em sua meia-idade, passa a rememorar acontecimentos de sua infância através de uma nova perspectiva, revelada no decorrer do filme de forma bastante inteligente.
Desde o início, nos primeiros contatos com a protagonista, o roteiro nos mergulha em seu contexto de vida. Ainda que, inicialmente, fiquemos perdidos a respeito dos acontecimentos, entendemos que algo de estranho, misterioso ou mal explicado esconde-se por detrás dos olhares distantes de Jenny. Ela trabalha como documentarista e se, no início do longa aparece registrando depoimentos de mulheres distantes de sua realidade, no decorrer do filme passa a documentar e rememorar sua própria trajetória, essencialmente em razão de um estopim: o conto escrito na infância e “achado” por sua mãe (papel de Ellen Burstyn). A mãe, uma personagem bastante curiosa, pois surge como aquela que sabe início, meio e fim do conto e é a força motriz instigante para que a filha especule suas próprias memórias.
Os flashbacks são muito bem construídos, mas não entregam os acontecimentos da infância de Jenny (nesta fase vivida por Isabelle Nélisse) de forma abrupta, pelo contrário: sutilmente expõem elementos esparsos. Nesse processo, quem assiste ao filme consegue ou, ao menos, tenta montar o quebra-cabeça narrativo, sendo o tempo todo provocado a duvidar de suas suspeitas. É, afinal, um filme que exige bastante atenção, mas que, de certa forma nos atrai involuntariamente, sem que precisemos despender maiores esforços a fim de efetivamente nos ater na narrativa. Interessantíssimo notar que alguns dos flashbacks são mostrados a partir da visão da personagem principal, sendo normalmente estruturados da seguinte forma: através dos olhos de Jenny, percebemos que ela faz perguntas, como se entrevistasse os outros personagens, em busca de informações a respeito daquele passado que até então ela havia enterrado. É curioso pois, ao passo que suas indagações parecem ser expressas por sua versão atual e mais madura, as outras personagens, nessas cenas, aparecem em idade juvenil, à época dos acontecimentos narrados no conto. É uma maneira de representar Jenny conjugando suas memórias e suas questões até então nunca feitas por si, sobre seu próprio passado. As conversas são apenas “alucinações” de Jenny, demonstrando questões que ela gostaria de ter feito e que sua própria mente procura responder.
Outro argumento absolutamente essencial para mostrar o afloramento da realidade de Jenny, começando a reconhecer que passara, efetivamente, pelas mãos de um abusador — e não de um namorado — é aquele no qual ela se pergunta: “Quem sou eu? Somos sempre os mesmos?” Pois a figura que tinha das pessoas de seu passado não fora alterada, mas quando reencontra algumas delas e percebe o envelhecimento, assusta-se e começa a se questionar; é um click de realidade. Além disso, outro elemento que indica a passagem entre o momento de conformidade e descoberta é a reprise de algumas cenas de flashback que são exibidas no começo do filme – quando não temos nenhuma suspeita de quem seriam aquelas personagens e quais seriam suas relações – mas que voltam a ser exibidas posteriormente, como um copia e cola, porém, em um instante no qual já temos mais informações para deliberar a respeito de seu significado.
Importante é saber a causa do abuso. Obviamente, um abusador sexual tem maneiras de abordar a vítima e normalmente o faz conforme as circunstâncias. No filme, percebemos que Jenny vivia em uma família numerosa, e, por ser a filha mais velha, sentia-se invisível e negligenciada pelos pais. A falta de atenção fez com que Jenny visse as figuras que lhe faltavam na Sra. G (Elizabeth Debicki) e em Bill (Jason Ritter) – seu futuro abusador. Ambos a tratavam de forma carinhosa, respeitando seu espaço e a aliciando de formas muito sutis, de modo que uma pré-adolescente de 13 anos, já tentada a buscar seu próprio espaço e tendente a pensar que tem total maturidade para tomar decisões, foi facilmente conquistada pelas ideias dos dois adultos. Eles davam-na atenção, consideração e confiança, espectros carentes na vida da menina. Isso é tão pungente, que por várias vezes o filme explica, não explicitamente, porque apenas Jenny fora “aliciada” e as outras meninas, que também faziam aulas de equitação, não; na verdade, as outras não eram tão vulneráveis quanto ela. Os dois adultos propuseram, afinal, tendenciosamente, que a vida poderia ter formatos diversos daqueles que ela conhecia, de que a noção de monogamia, família e casamento poderiam ser vistas por outras concepções – o que gerou na menina um trauma eterno, de forma que na vida adulta ela não via qualquer problema moral ou ético em relacionar-se com homens casados ou trair.
Tudo isso causa em Jenny um amadurecimento precoce: ela se força a realizar escolhas apenas para provar àqueles a quem ela começou a admirar que podia fazê-las, pois já era crescida.
O filme em si, afinal, tem nuances de um conto, metalinguístico. Transforma a realidade em idílico, a exemplo do retrato das conversas entre o subconsciente de Jenny Fox atual e o de sua fase infantil, retratado por uma contraposição imagética das duas, como se estivessem em um mesmo ambiente, um encontro entre passado e futuro.
O desenrolar do filme indiscutivelmente capta nosso interesse, ainda que algumas cenas sejam bastante indigestas, como as que mostram a relação do homem mais velho com Jenny. Imprescindível lembrar que o tratamento de temas como esse, na visão da uma vítima que inicialmente não enxerga sua condição de abusada, é muito delicado, pois é altíssimo o risco de cair em uma romantização do abuso. E, definitivamente, o filme soube trabalhar a temática, trazendo à tona um rol de indignação e emoções diversas, principalmente quando lembramos que “O Conto” é baseado em uma história real e não simplesmente em uma ficção. ■
“The Tale” está em exibição nos canais HBO.
Acadêmica de Direito na Universidade de São Paulo. Cinéfila, fez das salas de exibição sua segunda casa. O cinema é, junto da fotografia, a arte responsável por ensiná-la a olhar o mundo nos seus traços gerais e específicos. Em sua vivência acadêmica busca aperfeiçoar o entrelaçamento das duas áreas do conhecimento.