A semente do mal
“A Valsa de Waldheim” abre com um protesto em uma praça, que termina em um bate-boca entre um grupo de eleitores que acusa seus adversários de estarem votando em um candidato comprovadamente fascista. Mas, e isso pode te surpreender, a cena não foi gravada na Paulista no último domingo e transformada num filme em tempo recorde – o que seria estranho e absurdo, mas vivemos num país (e num tempo) estranho e absurdo.
A sequência real foi gravada em Viena, durante as eleições presidenciais austríacas de 1986. E não é o único momento do documentário da veterana cineasta Ruth Beckermann que apresenta um paralelo assustador e deprimente com o atual momento político brasileiro – já que o filme, candidato austríaco ao Oscar 2019, apresenta um país encarando, durante um processo eleitoral violento e desgastante, que seus demônios do passado ainda permanecem vivos porque nunca foram devidamente exorcizados.
O longa conta a história de Kurt Waldheim, ex-secretário-geral da ONU que, com uma plataforma conservadora, nacionalista e cristã, liderava com enorme vantagem as eleições da Áustria em 1986. Meses antes da votação, porém, um grupo de investigadores e ativistas judeus descobriu que o político havia mentido sobre suas atividades na Segunda Guerra.
Na autobiografia que Waldheim escreveu em 1949, ele havia afirmado que se feriu logo no início do conflito e voltou para Viena, onde terminou seus estudos. Documentos foram encontrados, porém, apontando que o candidato havia atuado em um vilarejo nos Bálcãs durante o auge do holocausto, supervisionando o envio em massa de judeus para campos de concentração.
O argumento de Waldheim foi que, assim como a enorme maioria dos austríacos, foi cooptado pela máquina nazista que invadiu o país e obrigado a lutar pelos alemães. E o grande objetivo do documentário de Beckermann é mostrar como essa desculpa foi o que permitiu que o fascismo permanecesse vivo e forte na Áustria até a década de 80 (e hoje).
Diferente da Alemanha, que assumiu seus crimes, puniu os responsáveis e criou vários espaços e monumentos que mantivessem viva a memória do holocausto para que algo assim nunca voltasse a acontecer, os austríacos se declararam vítimas de uma invasão e nunca reconheceram que muitos de seus familiares e cidadãos eram abertamente nazistas e acreditavam na causa de Hitler. E o país nunca puniu nenhum deles.
Então, quando um candidato presidencial surge afirmando que não deve ser penalizado por crimes cometidos décadas atrás, essa semente nunca sufocada encontra um espaço para germinar. Uma semente de que os judeus são ardilosos, de que o holocausto foi exagerado, que a Áustria deve pertencer aos austríacos e que só um candidato como Waldheim pode restabelecer os valores morais cristãos ameaçados pelos judeus / intelectuais / artistas / comunistas / mídia internacional. Qualquer semelhança… é uma coincidência histórica e cíclica.
Por meio de imagens de arquivo de noticiários televisivos, e algumas que ela mesma gravou na época, Beckermann revela o embate político que tomou conta do país e as cicatrizes históricas mal fechadas que ele reabriu. Mais do que uma investigação das mentiras e dissimulações de Waldheim, a cineasta faz um retrato do povo austríaco, e de como o nazismo nunca morreu ali, apenas adormeceu à espera de uma nova chance – ele não foi um fenômeno histórico, mas sim social, sustentado pelo ódio das pessoas, e não por um líder insano. E especialmente, de como quando um mal não é devidamente reconhecido, punido e registrado, ele está fadado a nascer de novo.
“A Valsa de Waldheim” faz isso de forma objetiva, dinâmica e clara. O filme organiza 40 anos de história em 90 minutos com uma elegância formal bem maior que “O Silêncio dos Outros” – outro documentário importantíssimo presente na programação da Mostra, sobre a luta contra a impunidade da Lei de Anistia espanhola após a ditadura franquista, que não consegue desenvolver seus personagens e saltar de um para o outro com a mesma firmeza estrutural. Ainda assim, ambos são exemplos contundentes e indispensáveis de lições que vamos precisar aprender para nosso futuro. ■
O crítico viajou a convite da Mostra de Cinema de São Paulo