Existe uma obsessão contemporânea com heróis. Super-heróis. Vemos eles nas telas e desejamos encontra-los/projetá-los na vida. O problema é que conferir a alguém o título de herói significa dar a ele(a) o monopólio da verdade. Não importa os meios, ou o que a pessoa faça, ela está fazendo sempre pelos motivos certos.
Só que heróis não existem. Na verdade, é assim que nascem capitães Nascimento, Trumps, Bolsonaros: figuras a quem damos carta branca para resolver tudo que acreditamos existir de errado com o mundo. Mas políticos não são heróis. Assim como policiais não são heróis. São seres humanos, com julgamentos falhos, sujeitos a erros como todos nós.
E é isso que “Culpa” tenta explorar. Candidato dinamarquês ao Oscar de filme estrangeiro e vencedor do júri popular em Sundance, o longa acompanha Asger Holm (Jakob Cedergren), policial trabalhando no “190” de Copenhague. Ele atende Iben (voz de Jessica Dinnage), uma mulher que afirma estar sendo sequestrada e, sem poder extrair muita informação dela, vai tentar descobrir o que está se passando e salvá-la.
O grande diferencial do longa de estreia do diretor Gustav Möller é que ele narra toda essa história de dentro da central onde Asger trabalha. O filme nunca sai dali, prendendo o espectador não apenas ao ponto de vista do policial, mas ao rosto dele – em closes tensos, e muitas vezes silenciosos. A proposta é um showcase para um excelente trabalho do ator Jakob Cedergren, sozinho em cena quase o tempo todo e reagindo apenas a deixas de áudio. E um exercício de roteiro interessante, mantendo a atenção do público por meio de elipses e de projeções de suas próprias expectativas – um exercício de estilo que lembra o recente “Locke” (com Tom Hardy), associado a algumas reviravoltas de gênero.
Cedergren e essas curvas da trama são o fio condutor do espectador, mas eles nunca funcionariam se a direção de Möller não fosse capaz de manter a tensão durante 1h25 de projeção com tamanha competência. O cineasta tem pouquíssimos recursos à sua disposição em termos de imagem – a maior força do longa vem da sugestão do que se passa no extracampo, e não da exploração do que está em cena. Mas ainda assim ele representa bem o arco do protagonista, iniciando em uma sala mais iluminada, depois indo para uma mais escura, e terminando numa explosão catártica de vermelho.
Asger não é uma má pessoa, mas ele pode ser um mau policial – algo que o longa sugere com indícios bem claros desde o começo. E o longa quer testar exatamente a conexão do espectador com esse protagonista, que é sua fonte primária de informação – mas que, à medida que roteiro revela por que ele está ocupando aquela função, revela-se cada vez menos confiável.
Essa história pregressa, por sinal, vai sendo descascada durante o filme, e talvez seja o seu ponto mais fraco. Por mais que a tensão envolvendo o caso de Iben seja o grande plot de “Culpa”, a história que realmente importa é a de Asger, o motivo de ele estar ali, sua relação com seu trabalho, seu processo de tomada de decisões e suas consequências. Möller usa o passado recente do protagonista para potencializar o impacto do destino final de sua jornada dramática. Mas, em certa medida, ele é desnecessário – e é possível imaginar se a rasteira final, e seu argumento, não teriam ainda mais força sem esse background um tanto batido.
Mas ainda que imperfeito, “Culpa” é um exercício narrativo ousado e envolvente. As reviravoltas podem lhe custar parte do público, e a claustrofobia pode cansar um pouco, mas Möller tem controle de sua experiência – e, com enxutos 85 minutos, sabe onde começar e até onde ela pode ir. A sensação ao final pode ser um tanto desconfortável e não exatamente satisfatória, mas o objetivo é provavelmente esse. ■
Texto escrito como parte da cobertura da 42ª Mostra de Cinema de São Paulo. O crítico viajou a convite da Mostra.