“Nasce uma Estrela” é um filme sobre um músico que enxerga uma artista por trás de uma mulher comum. E uma mulher que enxerga um ser humano por trás de um astro do rock. Acima de tudo, é um longa sobre duas pessoas que se enxergam como realmente são. E a tragédia da história tem início exatamente quando ele vê o sucesso apagando essa identidade artística única dela – e ela vê que as falhas que fazem dele um ser humano talvez sejam profundas demais para ser possível salvá-lo.
Antes dessa tristeza toda, porém, a primeira metade de “Nasce uma Estrela” é um cruzamento charmoso e hollywoodianizado entre o belo musical “Once: Apenas uma Vez” e a canção “Little Person”, escrita por Jon Brion para “Sinédoque, Nova York”. É um drama romântico de direção competente, ainda que nada brilhante, carregado pela boa química entre Bradley Cooper e Lady Gaga e pelas ótimas canções da trilha.
A trama segue Jackson Maine (Cooper), rock star alcóolatra que, numa noitada, descobre a tímida e insegura cantora Ally (Gaga) se apresentando em um bar de drags. Ele reconhece de cara um talento nato e, apaixonado, catapulta a jornada dela rumo ao estrelato. Enquanto Ally desponta para a fama, porém, Jackson é consumido pelo alcoolismo e uma bipolaridade latente.
A trajetória é a mesma dos três longas anteriores (e de “O Artista”, que também bebeu na mesma fórmula). Mas o grande diferencial desta nova versão é que o roteiro e a performance de Cooper são os primeiros que conseguem realmente provocar a empatia do público pelo arco trágico de Jackson. A grande estreia de Gaga no cinema pode ser o chamariz de glitter do filme, mas o verdadeiro destaque da produção é a performance de Bradley Cooper, que faz do músico uma mistura da energia autodestrutiva de Chris Cornell com o humanismo de Eddie Vedder.
Especialmente nos quarenta minutos finais, “Nasce uma Estrela” é clara e meticulosamente montado para destacar a corrosão interna do protagonista – que vê a indústria pop sugar a alma de Ally, enquanto sua própria carreira se esvai com o álcool e a tinite no ouvido. Cooper expressa essa derrocada em cada silêncio e cada olhar, capturados pela câmera de Matthew Libatique e por sua própria direção.
E essa sutileza é seu grande trunfo sobre Gaga: o arco e a transformação de Jackson são internos, enquanto os dela são externos, muito marcados pelo cabelo, maquiagem e figurino. Não que a cantora não tenha seus méritos: nas cenas no palco, a estrela mostra como é só ali que Ally – um patinho feio esperando para ser visto como cisne – consegue ser quem realmente é. Mas nos momentos mais contidos do longa, ela reincide em alguns cacoetes (como o biquinho triste e o sorriso feliz) que denunciam suas limitações como atriz e sua capacidade de explorar e provocar as arestas mais sombrias do relacionamento codependente dos dois protagonistas (caught in a bad romance).
O roteiro pouco sutil (o empresário vilanesco é o maior sintoma disso), com alguns diálogos mais óbvios e pouco trabalhados, não a ajuda muito. Ainda assim, com a ajuda da câmera de Libatique trafegando com fluidez do palco para a vida, Cooper confere autenticidade emocional e humanidade às cenas do que é, essencialmente, um conto de fadas às avessas – além de atualizá-lo com personagens negros, latinos e LGBTQ.
E se os diálogos deixam a desejar, as músicas são o que deve tornar “Nasce uma Estrela” um fenômeno pop. A cena em que Jackson convida Ally ao palco pela primeira vez, para cantar “Shallow” (provável vencedora do Oscar da categoria no ano que vem), é um dos momentos mais mágicos e arrepiantes do cinema em 2018. É escapista, pouquíssimo realista e algo que só aconteceria no cinema. Mas é captado com uma beleza e uma paixão tão grande pelo que aquele momento deseja expressar que é quase impossível não sentir o amor de Cooper pelo poder da arte em seu estado mais puro e cru.
Cada apresentação no palco tem esse dom de transportar o espectador da realidade para um mundo de luz e acordes, de cinema e música. De arte, pop e descolada de toda a tragédia do mundo real. E neste momento, estamos precisando disso mais do que nunca. ■
“Nasce uma Estrela” está em cartaz nos cinemas.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.