Ser “desconstruído” hoje é muito importante, especialmente para pessoas – e homens – brancos. Estar ciente dos próprios privilégios, e das injustiças, violências e desigualdades enfrentadas por negros e demais minorias. Ouvir e interessar-se pelas diferentes culturas e experiências – e, quem sabe, tornar-se até um aliado.
Mas é extremamente importante entender que ser um aliado não te faz um negro. Conhecer a cultura afrodescendente não te faz um negro. Morar na favela, ou numa periferia, não te faz um negro. Gostar de, e saber cantar, rap não te faz um negro – assim como vestir-se de determinada maneira. Ter a pele escura e, por isso, andar na rua à noite com medo de levar um tiro sem motivo da polícia, ou ser confundido com um bandido que não se parece em nada com você – isso, sim, é uma experiência que só uma pessoa negra vai ter.
E essa confusão tão 2018, e tão turva para tantas pessoas, é a matéria-prima de “Ponto Cego”. O longa de estreia do diretor Carlos López Estrada é centrado na relação entre dois amigos de infância, e em como a cumplicidade entre eles tornou as proximidades e diferenças das experiências dos dois confusas a tal ponto que eles se transformam no ponto cego do título um para o outro.
A trama acompanha o jovem negro Collin (Daveed Diggs) em seus últimos dias de condicional após sair da prisão. Ele trabalha fazendo mudanças com Miles (Rafael Casal), seu amigo de infância – um daqueles branquelos que cresceu no gueto, metido a “mano”, que fala e se porta como um rapper, falastrão, e que se orgulha de carregar uma arma sem necessidade aparente. Ele é uma ameaça constante à condicional do amigo, que sabe disso, mas não parece capaz de escapar à força magnética quase autodestrutiva que o atrai a Miles e suas confusões.
Collin quer passar batido, não ser notado. O que fica claro quando, voltando para casa à noite um dia, ele testemunha um policial branco atirar em um jovem negro pelas costas. E decide não falar nada. Porque sabe que nada de bom poderia resultar disso. É essa essência única e dolorosa da experiência negra que parece invisível a Miles, na sua postura e ações inconsequentes, e na maneira como ele não enxerga que ele e Collin são vistos e julgados de formas diferentes pelo mesmo ato.
O mais interessante do roteiro – escrito pelos próprios Diggs e Casal – é a inversão de papéis da típica dupla p&b. Em “Ponto Cego”, Miles é o fanfarrão cômico, exagerado, nervosinho e barraqueiro – o típico estereótipo cômico reservado a atores negros em inúmeros filmes – em contraponto à introspecção constantemente sob ameaça de Collin. E Casal tem o mérito de abraçar sem medo um personagem poser e sem muita noção, por quem o público sente pouquíssima empatia.
Esse registro “um tom acima” de Miles é o mesmo adotado pela direção de López Estrada. O cineasta parte de um dispositivo do roteiro – o de que vários diálogos são disparados com tanta rapidez e cadência que se tornam uma espécie de rap no meio do filme, numa mistura de Spike Lee com “Hamilton” (o fenômeno musical da Broadway que revelou Daveed Diggs) – para encenar “Ponto Cego” num tom elevado, e efetivamente gritado em muitos momentos.
O problema é que a recorrência desses recursos, e dos muitos diálogos discutindo os temas da história, acabam tornando “Ponto Cego” um tanto exaustivo e pouco sutil. Isso fica claro na cena clímax do filme, em que Diggs entoa versos dignos de um Duelo de MC’s, mas que parece exagerada e desnecessária porque 1- tenta resolver algo que não precisava, já que o ponto central do filme é a amizade tóxica de Collin e Miles, que já havia concluído seu arco; e 2- porque uma escolha tão ousada a essa altura parece transformar um thriller-drama racial em um musical, tirando o espectador da tensão do momento.
Os fãs de hip hop devem achar os raps geniais, mas os demais podem estranhar e rejeitar o recurso. Mesmo esses últimos, porém, vão reconhecer o interessante estudo de dois personagens obrigados a enxergar a si próprios no espelho, suas limitações e defeitos, e o que essa autoconsciência vai causar em cada um deles, além de algumas cenas de altíssima tensão e desconforto sobre a violência racial nos EUA. Não chega a ser um Kendrick Lamar, mas também não é um Vanilla Ice. ■
“Ponto Cego” está em cartaz nos cinemas.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.