"Selvagem" (Sauvage, 2018) - Foto: Divulgação
"Selvagem" (Sauvage, 2018) - Foto: Divulgação

42ª Mostra de SP: “Selvagem”

Vira-lata na selva de pedra

Pode soar um tanto ofensivo, mas Léo (Félix Maritaud), o protagonista de “Selvagem”, é como um desses cachorros vira-lata de rua. Ele passa o tempo todo indefeso, esperando por uma mínima demonstração de afeto, uma migalha de qualquer coisa. E quando recebe, a reação é tão visceral e inesperada que ele vai seguir a pessoa com uma fidelidade eterna.

O problema dessa metáfora são vários, e intencionais. O primeiro é que, se você se comporta assim, corre o risco de muitas pessoas te verem, e tratarem, realmente como um animal – o que acontece com Léo bem mais do que as sonhadas migalhas. E o segundo é que essa fidelidade canina pode ser devotada a alguém que não está nada interessada nela. O que também vem a ser o caso do protagonista.

Léo é um garoto de programa que passa os dias em um ponto de prostituição masculina de Paris. Até onde o espectador é informado, ele não tem uma casa, nunca é visto tomando banho, ou mesmo fazendo uma refeição que não seja roubada ou tirada do lixo. Aparentemente, Léo tem uma única roupa, e cueca, e todo o dinheiro que ganha deve ir para as drogas que usa. E sua carência e imaturidade afetiva – quando uma médica se revela sinceramente preocupada com ele, o protagonista a abraça, emocionado – indicam que ele provavelmente nunca teve, ou conheceu, pais ou família.



A aparência do protagonista é constantemente oleosa e malcuidada – e seus clientes se dividem entre aqueles que desejam cuidar dele, e os que não escondem o asco. Mas por mais que busque sempre alguma forma de carinho, como um animal carente, a única atenção que realmente interessa a Léo é a de Ahd (Éric Bernard), colega de profissão que nem se identifica como gay e que quer apenas encontrar alguém e melhorar de vida.

A ligação codependente que o protagonista vai demonstrando com o amigo – que deixa sempre claro seu desinteresse afetivo, ao mesmo tempo em que tenta ajuda-lo – é imatura e quase infantil. E a verdade é que, mesmo vivendo à base de sexo e drogas, Léo tem a idade emocional e a ingenuidade exasperante de uma criança – não apresentando nenhum interesse ou capacidade de sair daquela situação, quase incapaz de cuidar de si mesmo e da própria saúde, e buscando apenas os prazeres imediatos de alguma conexão humana.

E é essa mistura de filhotinho indefeso com criança abandonada que faz o público se afeiçoar a ele. Em seu primeiro longa, o diretor Camille Vidal-Naquet adota um olhar documental, com uma câmera que observa à distância (física e emocional), acentuando o tom realista e cinema vérité de “Selvagem”. E cabe totalmente à ótima performance de Félix Maritaud (“120 BPM”) fazer com que o espectador se importe com aquele personagem, cujo nome mal é proferido durante o filme, e enxergue nele um ser humano. Alguém que, mesmo diante das situações degradantes a que o roteiro lhe submete, tem uma identidade uma dignidade.

O ator imbui Léo com um andar espevitado e uma devoção genuína por seus clientes, dando algum calor à produção e tornando sua violência física e psicológica um pouco mais palatável. “Selvagem” é um filme pesado, e em momentos deprimente, que não faz nenhum tipo de concessão ao seu objetivo de mostrar as agruras da vida de alguém na situação de Léo. É uma abordagem que lembra quase aqueles documentários do Discovery que observam um leão devorar um animal indefeso, sem fazer nada para impedir. E essa impassividade moral, direcionada a um ser humano, tem suas implicações éticas e pode incomodar alguns. Quem tiver coragem de se aventurar, porém, vai mergulhar num universo único, e olhar pela primeira vez para pessoas pouquíssimo vistas no cinema, e solenemente ignoradas do lado de cá da tela. 

O crítico viajou a convite da Mostra de Cinema de São Paulo