Atrações sempre muito procuradas na Mostra de Cinema de Tiradentes, os seminários Encontros com os Filmes reúnem cineastas e críticos com o público para discutir longas e curtas em competição e acontecem sempre no dia seguinte às exibições no Cine Tenda. A seguir, você confere uma breve recapitulação do que foi discutido nos debates.*
Começamos com a Mostra Olhos Livres, que teve como um dos destaques o filme experimental “Tragam-me a Cabeça de Carmen M.”, de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein. A obra resgata a estética tropicalista e a figura de Carmem Miranda para representar o caos sócio-político em que o Brasil se transformou. Bragança defendeu que Carmen Miranda teria sido uma grande pensadora da cultura brasileira. A crítica convidada Ela Bittencourt, que comentou o filme, afirmou que “existe o imaginário em torno da Carmen Miranda na personagem central do filme, que tenta se apropriar de certo espírito da cantora e atriz dentro de uma realidade que tenta oprimi-la”.
Ainda para Bragança, quando pensamos a cantora pela perspectiva trágica, “estamos tentando discutir o quanto devemos pensar o lugar do país, dentro das nossas bolhas”. “A Carmen que nos interessava no filme é aquela que sonhou um tipo de identidade pela construção cultural, pelo deboche, pastiche e colagem e que, com isso, influenciou o mundo inteiro”, afirmou ele. O título do filme (que remete ao western de Sam Peckinpah, “Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia”, de 1974) foi pensado por esse sentido: o de entregar a “cabeça” de uma Carmen Miranda sem idealizações que se referisse “à atual tragédia que vivemos no Brasil”.
A comédia “Superpina – Gostoso é Quando a Gente Faz!” é uma produção pernambucana que acompanha o cotidiano de um grupo de personagens que têm seus caminhos cruzados e ligados por um supermercado em que situações pitorescas acontecem. Ao mesmo tempo, o filme discute o livre amor em uma ambientação psicodélica.
Sobre “Superpina”, o crítico convidado Fábio Feldman apontou um contraponto entre o capitalismo, simbolizado pelo ambiente do supermercado onde parte da ação se passa, e o desbunde onírico dos personagens, em cenas de farra e orgias. Para o diretor Jean Santos, essa leitura tem a ver com o caráter musical que lhe inspirou a escrita do roteiro – inicialmente para um curta (anteriormente exibido em Tiradentes), depois, numa expansão do projeto, para um longa.
O terceiro filme apresentado na Olhos Livres foi o documentário “Trágicas”, que incorpora depoimentos de mulheres contemporâneas (mães que não puderam enterrar seus filhos, mulheres exiladas, mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou violência do Estado) a encenações, em três atos, de tragédias das personagens gregas Antígona, Electra e Media, revividas pela atriz Gisela de Castro.
A diretora Aída Marques contou no debate sobre suas escolhas para mostrar os relatos de várias mulheres vítimas do regime militar e das forças de opressão brasileiras, intercalados com as cenas filmadas no palco. Ao lado dela, a pesquisadora Patrícia Machado ponderou que “a montagem do filme mostra que a fala das mulheres é tão forte que, quando entra a encenação, a sensação é de que a tragédia grega fica muito pequena diante dos depoimentos”.
“Currais”, documentário cearense de David Aguiar e Sabina Colares, levou a Tiradentes a memória de campos de concentração na Fortaleza dos anos 1930, levantando diversas questões sobre encenação e registro histórico. “O filme opta pelo dispositivo de ter um ator (Rômulo Braga) mediando a pesquisa que movimenta a narrativa”, comentou Érico Araújo Lima, convidado para falar sobre “Currais”.
A diretora Sabina Colares reforçou que o maior estímulo era justamente ir a campo aprofundar informações sobre os acontecimentos retratados, a despeito dos perigos que a equipe de filmagem corria por conta de facções que dominam a região mostrada. “Houve riscos reais na produção, muita coisa não pudemos fazer por causa disso”, apontou.
O vencedor da Mostra Olhos Livres foi “Parque Oeste”, documentário goiano de Fabiana Assis sobre a violência sofrida por moradores de uma ocupação na capital do estado em 2005. O filme teve comentários do crítico Francis Vogner dos Reis, que chamou atenção para a sequência do ataque da Polícia Militar aos moradores, filmado por uma das pessoas lá presentes. “A opressão da polícia é feita de forma espetacular com o intuito de infligir medo. É um espetáculo da violência com objetivo de proteger a propriedade, e a propriedade virou algo muito valorizado pelas elites no Brasil”, disse Francis. “A força, no sentido grego, esmaga e destrói. Essa força sempre esteve no país, em qualquer época. E resta àquelas pessoas se mobilizar para resistir”.
A diretora Fabiana Assis, ao lado de Eronilde, uma das moradores da comunidade de Real Conquista e viúva de uma das vítimas do ataque da PM em 2005, disse que sentia a responsabilidade de lidar com as imagens daquele dia, por estar relembrando momentos de agonia a pessoas que sofreram aquela violência. Antes um curta, o projeto de retomar a desapropriação do Parque Oeste surgiu quando Fabiana teve acesso a mais material e decidiu por montar um longa-metragem. “Era necessário maior tempo de assimilação e aprofundamento”, contou.
Mostra Aurora
Falando agora da prestigiada Mostra Aurora, principal competição de Tiradentes, o primeiro filme exibido é um forte candidato ao Troféu Barroco. Trata-se de “Seus Ossos e Seus Olhos”, segundo longa-metragem de Caetano Gotardo, diretor de “O Que Se Move” e parceiro criativo de Juliana Rojas e Marco Dutra, aclamada e premiada dupla de cineastas responsável por filmes como “Trabalhar Cansa” e “As Boas Maneiras”.
O crítico convidado Pablo Gonçalo disse que o filme de Gotardo “convida o espectador a uma fabulação por meio de cenas que não apresentam ação, mas relatos alusivos”. Para ele, essas cenas, apesar de certo caráter celebratório do encontro e da palavra, não se completam nos encontros que registram. Pablo apontou, com isso, uma incompletude de essência do filme. “É uma obra sobre a escuridão do mundo contemporâneo”, afirmou, em relação ao imobilismo paralisante que ele percebe nas ações dos personagens.
Segundo filme apresentado na Aurora, “Tremor Iê”, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva, apresenta um cenário distópico, com elementos de ficção científica mesclados ao realismo social, para apresentar um futuro imaginado em que um regime autoritário tomou o poder após as manifestações de 2013.
Na conversa sobre “Tremor Iê”, a crítica convidada Carol Almeida destacou a estratégia ficcional do filme de “confundir o espectador, o tempo todo, sobre quem está narrando a história, com saltos temporais entre presente, passado e futuro e lidando com a natureza fantasmagórica do momento vivido pelo país”. Para Carol, trata-se de um filme sobre o Brasil de hoje, mesmo tendo sido feito antes das eleições de 2018. “Ele tem uma oscilação constante entre o que é memória e o que é invenção”.
O debate sobre “A Rainha Nzinga Chegou” levou ao palco a codiretora Isabel Casimira Gasparino e toda sua vivência com a ancestralidade negra. “Quando digo que tudo é para todo mundo, é porque é. O caminho é longo, mas ele é nosso também, e uma hora ele chega”, disse Isabel, falando da emoção de discutir, em Tiradentes, um filme que trata de ritos transmitidos por sua avó e sua mãe e de heranças africanas que as acompanham por toda a vida. No filme, ela viaja à África em busca de suas raízes e das origens da Rainha Nzinga, experiência registrada no filme junto dela e da codiretora Junia Torres. “Ir ao Congo foi um renascimento e uma reafirmação de que tudo que eu tinha aprendido sobre meus antepassados era verdadeiro”, exaltou.
Nos debates sobre o paraibano “Desvio”, de Arthur Lins, e o goiano “Vermelha”, de Getúlio Ribeiro, o que se desprendeu foi a mistura de rigor e frescor que se sente dos trabalhos, vindos de dois jovens talentos que demonstram grande consciência do que buscam em suas expressividades.
“Eu me interessava por acompanhar um personagem sem fazer julgamentos morais sobre suas escolhas”, disse Arthur Lins, sobre a construção do protagonista de “Desvio”, um presidiário em indulto de Natal que faz visita à família. “O interesse narrativo é o acúmulo de uma energia represada, que se materializa na cena da explosão do carro”, comenta o diretor, que defende ter feito um estudo de personagem ocultando um filme de ação. Citando referências em James Gray (“Os Donos da Noite”) e Michael Mann (“Fogo Contra Fogo”), Lins afirmou que seu grande interesse era pensar a trajetória do protagonista no curso espaço de tempo que ele passa fora da prisão e como esse período afetaria as pessoas ao redor.
Em “Vermelha” — que se tornou o grande vencedor da Mostra Aurora –, Getúlio Ribeiro filma o cotidiano de dois senhores e algumas outras pessoas ao redor, dentro de um pequeno arco dramático que se mantém enigmático até o fim. A intimidade dos ambientes domésticos e a proximidade com a família o ajudaram a atingir a potência que se percebe no filme – e também o senso de humor, como pontuou o crítico convidado, Ewerton Belico. “‘Vermelha’ é um inventário de pequenos acontecimentos, uma fatura narrativa na qual cabem materiais diversos e mudanças abruptas de registro. Ele parece fragmentado, mas só na superfície, e narra por polinização, com subtramas se espalhando no espaço e no tempo”, pontuou Belico.
Segundo o diretor, o filme foi feito ao longo de 2017 sem ordenação de filmagem, o que determinou a indefinição temporal que se percebe. “Durante o processo de montagem, percebemos que várias cenas poderiam existir em pontos variados do filme. Apesar de termos dois blocos – com os homens e com as mulheres – e apesar das distâncias de tempo na filmagem, conseguíamos mostrar a energia do contato e da comunicação”, disse ele.
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Acompanhe a cobertura completa da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes no cinematório.
* Com informações da assessoria de imprensa da Mostra de Tiradentes.