Pode-se dizer que “Currais” vai além da metáfora ao desenterrar um episódio dos mais terríveis da história recente brasileira – e é importante frisar o “recente”, porque nossa tendência é olhar para um passado que não completou nem 100 anos como se fosse um período tão longínquo quanto a antiguidade.
Dirigido por David Aguiar e Sabina Colares, o filme se passa nos dias atuais (uma inscrição na parede de uma casa abandonada, usada como locação em certo momento, traz a inscrição de uma data, 04/01/2017), mas seu objeto de investigação são os Campos de Concentração do Ceará, onde dezenas de milhares de flagelados da seca de 1932 foram aprisionados em troca de sobrevivência.
Falando abertamente: a elite local, apoiada pelo governo, fez uma higienização social para retirar do centro urbano e de seu convívio todas as pessoas adoentadas pela fome e que mendigavam pelas ruas de Fortaleza. Havia até mesmo uma “liga das senhoras católicas” como proponente e incentivadora de tamanha crueldade, que consideravam ser uma “limpeza”.
Nos Campos de Concentração, também chamados de “formigueiros humanos” (ou os “currais” do título, deixando evidente como eram tratadas as pessoas para lá enviadas), os corpos das vítimas que morriam (e não foi pouca gente) eram jogados e empilhados em valas, dia após dia. A morte, na verdade, parecia ser o objetivo. “Queriam que a gente morresse pra não dar trabalho pro governo”, ouvimos no relato de um dos personagens.
É muito provável que a maior parte da plateia (eu incluso) não tenha conhecimento do tamanho da tragédia humana que se deu ali ou sequer imagine que um ato de horror comparável ao Holocausto possa ter ocorrido no nosso país. O sentimento de culpa do espectador ao assumir sua ignorância só não é maior porque a motivação de “Currais” é justamente a busca por informação.
À medida que revisitamos e descobrimos a história junto do protagonista, entendemos a escolha dos diretores por uma narrativa em boa parte dramatizada: não só houve um apagamento sistemático dos registros históricos pelos detentores da “versão oficial”, como também o que foi feito ali é tão absurdo que a ficção precisa ser acionada para o filme dar conta de seu peso.
Classificado no catálogo da Mostra de Tiradentes como documentário, o que pode causar estranhamento quando se assiste ao longa, “Currais” foge até mesmo do que costumamos ver em filmes híbridos, em que situações reais ou imaginadas são encenadas pelos personagens-atores reais, tirados do lugar de entrevistados como tradicionalmente aparecem no cinema documental. Com fotografia assinada pelo cineasta Petrus Cariry (“O Grão”, “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois”), muitas das cenas são construídas com marcações e enquadramentos dentro de um certo rigor formal que distancia o longa do tratamento estético convencional para o formato.
A presença de atores profissionais também colabora para a sensação de estarmos vendo um filme de ficção, especialmente pelas presenças imediatamente reconhecíveis de Rômulo Braga e Zezita Matos – o primeiro como o personagem principal, Romeu, que empreende uma viagem pelo sertão em busca das respostas e dos vestígios sobre os Campos de Concentração, após ter contato apenas com alguns documentos, fotos e relatos de seu avô, sobrevivente das atrocidades na cidade de Senador Pompeu (que, logo Romeu descobre, não era o único município para onde as vítimas da seca eram levadas).
Outros atores entram em cena no decorrer do filme, como pessoas que auxiliam o protagonista em sua missão. Elas também acabam se interessando e se aprofundando na pesquisa, num gesto que repete o próprio processo de criação do longa e que deveria servir de espelho para nós também irmos atrás das verdades soterradas das nossas origens como país.
Seja ficção de abordagem documental, seja documentário de abordagem ficcional, “Currais” presta um enorme serviço à História do Brasil através das potencialidades da linguagem cinematográfica. Os tão necessários atos de rememoração e restauração histórica de Aguiar e Colares fazem de “Currais” um filme de busca por um passado, mas também por um presente, posto que ainda existem, por todos os cantos, os dramas vividos pelas vítimas de Senador Pompeu, Quixeramobim, Pirambu… A atualidade do filme é tão dura quanto à fala de outro personagem: “O meu braço é uma ferramenta, eu considero uma matéria-prima, mas eles não davam valor”. ■
Filme visto na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, dentro da Mostra Olhos Livres, em janeiro de 2019.
Crítica revisada na ocasião do lançamento oficial do longa, em abril de 2021.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.