“Capitã Marvel” chega aos cinemas com a importante marca de ser o primeiro filme do Universo Cinematográfico Marvel de protagonismo feminino. Obviamente, a representatividade é um ponto chave em seu lançamento, pois é o único dos 21 filmes da franquia centrado em uma super-heroína e também o primeiro com direção coassinada por uma mulher. Além disso, o filme se encontra numa posição de destaque entre as outras adaptações dos quadrinhos porque se trata da história de origem de uma das mais poderosas personagens e que é essencial para o futuro dos Vingadores, com o enfrentamento de Thanos e a possibilidade de reparo do tremendo estrago que ele causou em “Guerra Infinita”. O que só saberemos como será resolvido em “Vingadores: Ultimato”, capítulo final dessa grandiosa e rentável narrativa que vem sendo construída desde 2008.
// Atenção, contém spoilers! //
O início do enredo de “Capitã Marvel” traz Carol Danvers (Brie Larson) ainda como Vers, uma das integrantes do exército de elite dos Kree, raça alienígena que está em guerra com os metamórficos Skrulls. Ela é treinada para combate por Yon-Rogg (Jude Law), seu mentor e líder da equipe. Numa das missões, acaba sendo capturada pelos Skrulls e é atormentada por imagens de um passado pessoal que até então ela desconhecia, pois não possui memórias de seu passado anterior à vida com os Kree. Quando consegue fugir, caindo no Planeta C-53 (para os íntimos, Terra), ela decide permanecer por aqui para capturar os Skrulls, motivada também por sua busca por respostas sobre si mesma que irão revelar informações sobre ela e sobre o conflito intergalático em que está envolvida.
Brie Larson entrega uma interpretação consistente e coerente com o que vive sua personagem, perdida entre lapsos de memória, sem saber ao certo de onde vem e quem ela é. Ela evoca uma expressão de distanciamento que muito diz da confusão de Carol tentando entender o que lhe acontece externa e internamente, ao mesmo tempo em que quer disfarçar seu problema pessoal que pode ser visto como uma fragilidade. E disfarça porque, durante seu treinamento, sempre lhe era cobrado o controle de emoções e, principalmente, de seus poderes. Interessante notar que a medida que ela vai se descobrindo, parece, então, mais à vontade.
E é aqui, na Terra, em plenos anos 90, que Carol conhece Nick Fury (Samuel L. Jackson, rejuvenescido digitalmente). A relação que se estabelece entre eles nos remete aos filmes policiais em que há uma dupla de parceiros. A amizade dos dois serve tanto para nos afeiçoarmos ainda mais à Capitã quanto para conhecermos uma faceta mais descontraída e cômica de Fury, principalmente quando entra em cena o gato Goose, uma adição inusitada ao grupo. Também a relação de amizade entre mulheres chama a atenção quando conhecemos Maria Rambeau (Lashana Lynch) com quem Carol trabalhou na Força Aérea Americana antes de ser levada pelos Kree. Maria é sua melhor amiga, mãe solo de Mônica (Akira Akbar), menina de 11 anos bastante esperta. E assim percebemos como o trio forma um verdadeiro núcleo de apoio, exemplo de sororidade.
Em relação ao conteúdo feminista, embora seja discreto, afinal estamos diante de um produto comercial, há muitas possibilidades de discussão a partir da jornada de Carol, que foi construída numa jornada de heroína tal qual a autora Maureen Murdock definiu em seus estudos que complementam a conhecida jornada de herói de Joseph Campbell, associando conflitos e aspirações essencialmente femininas. Alcançar a transformação exige vencer, através do autoconhecimento e autoaceitação, a limitação que lhe é imposta, de diversas maneiras, de que não é capaz ou não pode ser tudo o que deseja apenas porque nasceu mulher.
O ápice desse discurso — que também pode inspirar homens por falar de superação, mas que toca mais diretamente as mulheres devido à nossa vivência oprimida numa sociedade patriarcal — é quando, em seus flashbacks, vemos o quanto Carol teve que se provar o tempo todo, desde criança, pois era sempre desacreditada, inclusive pelo próprio pai, ora por ser “emocional demais”, ora por estar em uma atividade ou espaço tidos como masculinos. Daí a cena em que ela se levanta com autoconfiança de uma queda, evocando todas as outras vezes que ela teve força e se levantou em sua vida, equiparar-se a cena de “Mulher-Maravilha” em que Diana Prince, já com sua armadura, sobe pelas trincheiras para combater sozinha um ataque inimigo. Ambas são representações imagéticas que emocionam pela mensagem de empoderamento que sintetizam.
Já a figura do mentor de Carol, que mais tarde descobrimos que o que faz na verdade é controlá-la para que seja sempre submissa e sirva aos seus propósitos, é também representativa de todo um sistema a que nós, mulheres, somos submetidas, de controle do nosso comportamento, pensamentos e corpos. Romper com essas estruturas para descobrirmos quem realmente somos e nos conectarmos com nosso verdadeiro potencial é um desafio comum a todas. Portanto, nem é necessário explicar o quanto o desfecho da luta da Capitã — como humana e como heroína — nos chega como um deleite de pura inspiração.
Mas, numa análise geral, o filme é formulaico e não subverte ou acrescenta com originalidade em nada do que já é esperado para blockbusters desse tipo. Os diretores Anna Boden e Ryan Fleck são conhecidos por trabalhos interessantes no cinema independente, mas aqui não imprimiram nenhuma autoralidade. Os efeitos especiais decepcionam em cenas mais fantasiosas, as sequências de ação não são criativas e o antagonista carece de mais desenvolvimento (depois do ótimo Killmonger de “Pantera Negra”, é inevitável criar certa expectativa nesse quesito).
Por outro lado, por se passar nos anos 90, todos os elementos nostálgicos e de humor relacionados a essa década são bem aproveitados, o que acaba sendo o charme estético do filme. Além da já citada referência de filmes policiais, há outras inspirações claras, dos anos 90 e 80, como “Top Gun – Ases Indomáveis”, “Blade Runner” e “Star Wars”. Confirma-se o forte apelo ao repertório cinéfilo e à memória afetiva com a ambientação característica. Impossível ser indiferente aos objetos de cena como computadores antigos e máquinas do tipo pinball, e aos figurinos, como a camiseta de banda e a camisa de flanela amarrada na cintura, peças-chave do estilo grunge. Passagens por lugares icônicos que praticamente não existem mais como a locadora de vídeo Blockbuster (um aceno metalinguístico, assim como é a ponta de Stan Lee, que faz uma ligação direta com sua própria participação especial no filme “Barrados no Shopping”, de Kevin Smith, um fã assumido de HQs) e os tão frequentados cyber cafés ou lan-houses proporcionam uma verdadeira viagem no tempo. O quão divertido é poder relembrar um buscador online pré-Google (você conheceu o AltaVista?) ou o acesso a um arquivo em mídia física, o CD-ROM, que demorava uma eternidade para abrir! Rememorar assim nos traz a sensação de que os anos 90 já estão mesmo distantes, embora a música ainda seja muito presente. A trilha sonora, por sinal, é repleta de bandas encabeçadas por mulheres como Garbage, TLC, No Doubt e Hole que nunca deixamos de ouvir. Mas também tem Nirvana, R.E.M e outros.
Embora com problemas pontuais e sem tanta expressividade, “Capitã Marvel” cumpre seu papel e entrega uma diversão satisfatória para o público que acompanha a franquia e também para quem chega até ele de forma isolada. Coloca em discussão novamente a necessidade de mais representatividade no audiovisual e traz sementinhas de feminismo importantes para a identificação de mulheres de diferentes idades. Inclusive são notáveis as boas escolhas de nunca sexualizar a protagonista — nem no figurino nem pelos enquadramentos e diálogos — e excluir o clichê do interesse romântico, mostrando uma heroína focada no autoconhecimento e na luta por uma causa maior.