Em cerca de uma década, entre 2002 e 2010, Neil Marshall dirigiu quatro longas-metragens e se estabeleceu como um dos novos nomes do cinema de horror e fantasia. Em “Cães de Caça”, “Juízo Final”, “Centurião” e, sobretudo, “Abismo do Medo”, seu melhor filme até o momento, o cineasta apresenta um estilo próprio, marcado por cenas ultraviolentas e de ação bruta. Fez filmes sujos, desses que remetem a um passado não tão distante do cinema de gênero que tinha lugar garantido nos fundos das videolocadoras.
A atual década não foi tão produtiva para Marshall no cinema. Enquanto seus colegas do denominado “Splat Pack” seguiram produzindo um bom número de filmes (podemos citar Rob Zombie, Eli Roth, Alexandre Aja, Leigh Whannell e, claro, James Wan como os mais prolíficos), o diretor inglês foi para a TV e esteve à frente de elogiados episódios de séries como “Hannibal”, “Westworld”, “Perdidos no Espaço” e “Game of Thrones” (tendo inclusive sido indicado ao Emmy em 2014 pelo episódio “The Watchers on the Wall”). Em 2015, de volta à telona, dirigiu um segmento da antologia “Tales of Halloween”, mas só retornou ao comando de um longa agora com este novo “Hellboy”. E que retorno interessante.
Primeiro porque a terceira adaptação dos quadrinhos de Mike Mignola obviamente surge como um contraponto às duas anteriores, dirigidas e escritas por Guillermo del Toro com evidente sucesso junto aos fãs do personagem, mas não só eles. “Hellboy” (2004) e “Hellboy II: O Exército Dourado” (2008) conquistaram também boa parte do público não familiarizado com a diabólica criação do quadrinista californiano. E mesmo que os filmes não tenham quebrado recordes de bilheteria, um terceiro também com del Toro no comando só não ocorreu devido a problemas de bastidores que não cabe discutir agora. Fato é que o projeto acabou mudando de estúdio, de realizador e se tornou não uma continuação, mas um reboot.
Fiz questão de contextualizar a carreira de Marshall acima porque me parece essencial conhecer e saber o que esperar do diretor para não sair do novo “Hellboy” desapontado. Apesar de trabalharem nos mesmos gêneros e serem contemporâneos, Marshall e del Toro não poderiam ter estilos mais distintos um do outro, logo, era improvável que Marshall mantivesse o mesmo tom do colega mexicano, ainda mais tendo nas mãos a chance de recomeçar a franquia ao seu modo. E é saudável evitar comparações, pois os filmes de del Toro carregam qualidades inegáveis (em especial no que diz respeito ao cuidado com o design de produção, uma das características mais marcantes de seus filmes). Não é preciso desgostar dos primeiros longas para gostar deste novo ou vice-versa. São criaturas diferentes, cada uma com seus pontos positivos e negativos.
A começar pelos positivos (e reforço: não as elenco aqui em detrimento aos filmes de del Toro), o “Hellboy” de Marshall segue a linha do horror gore, ou seja, com muito derramamento de sangue e gosmas, membros decepados, cabeças explosivas e bichos feiosos povoando o açougue em que a tela se transforma em várias sequências. O linguajar do protagonista também está mais malcriado, com “shit” (“merda”) e “fuck” (“porra” e similares) no lugar do mais brando “crap” (“porcaria”, usado para atenuar a classificação indicativa, principalmente nos EUA, mas presente originalmente nas HQs de Mignola como uma fala característica do personagem). Até mesmo em sua aparência física, este Hellboy surge mais rude, medonho, descabelado e um tanto desleixado. Neste aspecto, cabe ainda ressaltar que o novo intérprete, David Harbour (o detetive Hopper de “Stranger Things”), entrega o que o diretor pede com a mesma competência que Ron Perlman fizera para del Toro.
O novo Hellboy é um anti-herói antes de ser um super-herói. E Marshall soube aproveitar muito bem esse fato, criando um filme anti-fórmula, o que, hoje em dia, é o mesmo que dizer anti-Marvel. E ir contra a regra aqui não necessariamente quer dizer negar ou fazer oposição: apenas quer apontar para outra direção, que é exatamente o que estamos precisando diante de uma homogeneização de conteúdo opressora na forma como o “padrão de qualidade” Disney (dona da Marvel e de tantas outras marcas) se impõe inclusive sobre a concorrência (veja os filmes recentes dos super-heróis da DC).
A impressão que temos é a de estarmos diante de um filme feito décadas atrás, mesmo que a trama se passe nos dias de hoje, como fica demonstrado na hilária gag de Hellboy tentando usar a tela touch screen de seu(s) celular(es). Nesse sentido, Marshall se posiciona fora do padrão ou, talvez, antes dele. O visual concebido junto a Paul Kirby e Alexei Karaghiaur no design de produção e direção de arte tem um quê de anos 90, algo que se percebe também nas próprias criaturas que, mesmo produzidas em CGI, têm “cara” de efeitos práticos e bonecos animatrônicos, com os quais podem até se confundir. Os exemplos mais bem-sucedidos dessa combinação (por sinal, usada também por del Toro em seus filmes com igual sucesso) são a bruxa Baba Yaga e os três gigantes que Hellboy enfrenta em um campo como se estivesse no ringue de telecatch em que ele entra durante sua primeira missão. Por outro lado, a equipe responsável pelo CGI não cria um efeito convincente para Ben Daimio (papel de Daniel Dae Kim, da série “Lost”) quando ele assume sua forma de jaguar. Apesar da homenagem a “Lobisomem Americano em Londres”, de Jon Landis, na cena da transformação, a animação do personagem soa falsa – e aqui temos más lembranças do CGI dos anos 90, que hoje parece precário diante do rápido avanço da tecnologia.
Já que toquei nesse ponto negativo do filme, aproveito para listar outros. Ainda sobre os personagens, o roteiro do estreante Andrew Cosby peca ao criar flashbacks desnecessariamente expositivos para explicar as origens de Daimio e Alice (papel de Sasha Lane, revelada no ótimo “Docinho da América”), embora esta tenha sido uma boa saída para contextualizar o surgimento do protagonista em substituição a uma sequência introdutória. Também não agrada muito a construção das motivações da vilã vivida por Mila Jovovich. A atriz é uma escolha apropriada para o tom desejado para o filme, porém, o ressurgimento de Nimue parece ser uma conveniência para a história acontecer, sem que haja uma justificativa que nos responda: “Mas por que ela voltou só agora?” Além disso, o ato final em que a feiticeira e Hellboy se confrontam tem algo de apressado, ainda que seja visualmente rico e satisfaça a vontade de vermos Anung Un Rama se conectar com sua origem arturiana.
Obviamente, sente-se falta dos parceiros icônicos de Hellboy no filme. Não temos Liz Sherman ou Abe Sapien, embora Ian McShane, o mais talentoso do elenco, forneça uma versão satisfatória do Professor Bloom. Mas mesmo que Daimio e Alice acompanhem Hellboy, o filme certamente é muito mais centrado nele do que nos filmes de del Toro, onde o espírito de equipe (e de família) é mais presente dentro do B.P.R.D.
A imagem final que o novo “Hellboy” deixa é a de um filme com inegáveis problemas no rejunte, mas divertidamente trash, em contraste ao horror gótico dos anteriores. Com liberdade para dar a sua interpretação da HQ, Marshall deliberadamente se recusa a colocar o filme nos moldes que renderam zilhões de dólares à Marvel. Se o resultado disso é fracasso financeiro, faz parte do jogo e é assunto para outro lugar. O que importa é que o diretor seguiu sua visão. Goste-se ou não do resultado, não se deve tirar de Marshall o mérito de ter sido fiel às suas escolhas. De outro modo, do que adianta, por exemplo, já que falamos de Disney, Guy Ritchie fazer um “Aladdin” que não tem cara de filme de Guy Ritchie? Se é para padronizar, melhor passar para outra pessoa que precise mais do emprego do que ele, não? Prefiro um filme problemático, porém autêntico. E admito, sem nenhuma culpa católica, que a aura de boteco copo sujo e hard rock deste “Hellboy” me atrai e agrada. ■
https://www.youtube.com/watch?v=IXlZGSkrzkc