Filmes sobre dependência química costumam ser narrados do ponto de vista do dependente. “Querido Menino” (Beautiful Boy, EUA, 2018) é uma história dessas, mas se beneficia por ter, na verdade, dois pontos de vista: o do jovem Nic Sheff, que adquiriu vício em metanfetamina, e o do seu pai, David Sheff, que desempenhou papel fundamental no tratamento de Nic para se livrar das drogas. Ambos escreveram livros sobre a experiência que viveram e o roteiro do filme é baseado nas duas publicações.
O longa é dirigido pelo cineasta belga Felix van Groeningen, que também assina o roteiro ao lado do australiano Luke Davies. A dupla tem experiência prévia em filmes sobre dramas familiares com temas médicos. O trabalho anterior de Groeningen é “Alabama Monroe” (2012), que trata da vida de um casal de músicos às voltas com uma doença terminal que acomete a filha deles. Já Davies coescreveu “Candy” (2006), romance sobre um jovem casal de artistas que inicia um caminho de autodestruição em meio ao vício em drogas.
Fica nítido que o tema de “Querido Menino” é caro a todos os envolvidos na produção e, provavelmente por isso, o resultado é um filme honesto em sua carga dramática e emotiva, mas que pesa a mão na sua pretensão de prestar serviço público, carregando uma mensagem um tanto professoral sobre os perigos das drogas e o quanto é difícil atravessar o tratamento.
O problema está concentrado justamente no roteiro, que constrói cenas em que o pai (interpretado por Steve Carell) conversa com médicos e especialistas na tentativa de buscar uma saída para o drama do filho (vivido por Timothée Chalamet) e para o seu próprio dilema, já que David também tenta entender onde errou na criação de Nic, a princípio muito amorosa e farta em recursos para que o rapaz pudesse crescer e se desenvolver em um ambiente de inegáveis privilégios.
Se por um lado o filme peca nessa tendência assistencialista, por outro é feliz na construção fluída de sua estrutura de flashbacks, que busca demonstrar que as tentativas de David em encontrar uma resposta para os problemas da família é infrutífera, pois esses problemas não existiram exatamente. Pode-se inferir que a separação dos pais causou um abalo emocional em Nic, mas isto não é apontado como a causa de seu comportamento em relação às drogas. O longa também evita pontuar que Nic andava em má companhia na escola ou criar cenas de bate-boca em que o filho joga na cara dos pais a culpa por ele ter se tornado um dependente químico. As cenas do passado da família deixam claro que Nic foi uma criança e um adolescente comum, que chegou à puberdade com predileção por vestir roupas escuras e ouvir rock pesado, como tantos outros garotos naquela idade. O desvio que o levou às drogas fica subentendido e o filme deixa a origem do problema em aberto pelo simples fato de que a resposta é muito difícil de ser alcançada.
“Bicho de Sete Cabeças” (2000), de Laís Bodanzky, é um bom parâmetro para pensarmos em como uma expectativa não suprida faz um pai tomar uma atitude que só piora a situação do filho, ao enviá-lo para uma instituição psiquiátrica. Em “Querido Menino”, David não toma medidas drásticas como essa, mas quer entender o que se passa com Nic. Afinal, a causa pode não ser meramente comportamental, mas neurológica e a ciência talvez (ainda) não seja capaz de defini-la. Existem distúrbios mentais sutis em suas diferenças e que, ao longo do tempo, foram erroneamente interpretados por médicos e pela sociedade, levando inúmeras pessoas a um sofrimento ainda maior do que aquele que elas já vivem internamente. Daí ser importante que o filme, mais do que passar uma mensagem (relevante, claro) de combate ao abuso de drogas, não pinte David como um pai autoritário ou Nic como um delinquente.
Vista por este prisma, a cena em que o garoto compartilha um baseado com o pai ganha um sentido extra, por não ser representada sob um viés de reprovação, já que David constata não ter controle sobre as atitudes do filho (por mais que tenha tentado exercer esse controle) e, mais tarde, não atribua à maconha a responsabilidade pela dor do rapaz. Talvez ele enxergasse essa culpa mais em si mesmo, por não ter sido tão presente quanto deveria ou gostaria. E naquele dia do baseado, David estava ao lado de Nic. Como diz a canção de John Lennon em que o título do filme é inspirado, “life is what happens to you while you’re busy making other plans” (a vida é o que acontece a você enquanto você está ocupado fazendo outros planos).
Ainda muito associado à comédia, Steve Carell se sai bem nesta mais recente investida em um papel dramático, interpretando David sem excessos. Sua preocupação com o filho é convincente e nos faz ter um olhar empático para sua difícil situação, em que precisa ser ao mesmo tempo gentil e duro com Nic para não levá-lo a tomar atitudes impulsivas. Por sua vez, Timothée Chalamet se distancia do lugar comum de personagens vitimados pela dependência química. Ele atua pelo olhar, o que é fundamental para enxergarmos sua alma aflita. É quase como se ele vivesse duas pessoas em uma: o rapaz que reconhece suas potencialidades e quer superar o vício, seguir com a vida, e o outro que quer buscar o alívio e se entorpecer a cada recaída. A transição que Chalamet faz entre essas camadas é muito natural, o que o torna o ponto alto do filme. ■
Texto publicado originalmente na Lume Scope.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.