"Brinquedo Assassino" (Child's Play, 2019) - Foto: Imagem Filmes/Divulgação
Foto: Imagem Filmes/Divulgação

Remake de “Brinquedo Assassino” é menos terror e mais “Black Mirror”

[Esta crítica traz detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

Rever hoje o “Brinquedo Assassino” original, lançado em 1988, resulta numa mistura de nostalgia e um certo constrangimento. Não porque o filme seja ruim, pelo contrário. Mas há de se reconhecer que ali estão juntos todos os exageros que a década de 80 permitia. Dirigido por Tom Holland (que três anos antes já havia feito o igualmente clássico “A Hora do Espanto”), o longa é um produto de sua época e, como tal, é muito bem construído. Porém, hoje, mesmo com a boneca amaldiçoada Annabelle em alta, cabe uma atualização à história de Chucky, o brinquedo que se torna um psicopata ao receber a alma de um assassino fugitivo da polícia.

A nova versão é um excelente exemplar de refilmagem: captura a essência do longa original, mas cria algo novo a partir dela. Na verdade, esse remake promove mudanças tão radicais que poderia ter sido lançado com outro título e talvez ninguém se importaria. Obviamente, isso não aconteceu dada a dependência que Hollywood tem de franquias. Ademais, esse é o segundo ou terceiro “reboot” da série criada por Don Mancini se considerarmos que “A Noiva de Chucky” (1998) já havia sido uma reinvenção, na chave da comédia, e que “A Maldição de Chucky” (2013) mudou novamente o curso da história do boneco. Diferentes desses, porém, o novo filme não só recomeça a trama do zero, como muda sua origem e lhe dá um novo sentido. 

Sem o envolvimento criativo de Mancini, o diretor Lars Klevberg e o roteirista Tyler Burton Smith, ambos novatos, tiveram carta branca para recriar Chucky. Logo na introdução, a dupla mostra o caminho que decidiu seguir, deixando para trás o lado sobrenatural e apostando em algo mais próximo da nossa realidade, indo assim na direção da ficção científica. O boneco agora é adaptado às novas tecnologias e capaz de se conectar a todos os equipamentos produzidos pela empresa que o fabricou, a Kaslan (avatar de Google, Apple, Amazon e afins). Mistura de “babá eletrônica” com assistente virtual, ele é vendido como muito mais que o melhor amigo das crianças. 



Não existe mais o assassino Charles Lee Ray, que no filme original, interpretado por Brad Dourif e usando magia obscurantista, “encarna” em um dos Good Guys. Agora, Chucky “nasce” quando um funcionário da fábrica da Kaslan no Vietnã, cansado de ser explorado pelo patrão e revoltado por perder o emprego, decide retirar travas de comportamento da interface de Inteligência Artifical de uma das unidades do boneco Buddi — justamente a que vai parar nas mãos do garoto Andy Barclay (Gabriel Bateman, de “Quando as Luzes se Apagam”), após um cliente devolver o produto defeituoso à loja onde trabalha a mãe do menino (papel de Aubrey Plaza, da série “Parks and Recreation”).

O “mau funcionamento” de Chucky se torna então um fator de sátira social muito mais próximo do thriller sci-fi de “Black Mirror” do que do horror slasher típico dos anos 80. As mortes eventualmente acontecem, com menos sustos e nem tanto gore em comparação ao filme de Holland. No entanto, o que interessa mais a Klevberg e Smith é o terror que a tecnologia é capaz de gerar se mal utilizada. 

Há alguns anos, um teste da Microsoft com um bot para o Twitter obrigou a empresa a abortar o experimento em menos de 24 horas. Isso porque a Inteligência Artifical da aplicação fez o robô virtual deixar de se passar por uma garota adolescente para assumir a personalidade de um nazista perverso. O que é mais assustador nessa notícia é que o bot “aprendeu” o discurso de ódio a partir das mensagens que absorveu da interação com humanos. Do mesmo modo, no novo “Brinquedo Assassino”, Chucky, desprovido de suas travas de comportamento (ou poderíamos dizer, com o superego “desativado”), aprende a ser um vilão e a matar a partir do que sua Inteligência Artificial observa da agressividade dos humanos. E a violência que ele absorve vem de vários lugares: das relações familiares, da televisão, do linguajar “gangsta” (“This is for Tupac!”, ótima cena) etc. Se há quem diga que os videogames deixam os jovens violentos, desta vez é o brinquedo que imita o dono, e não o contrário.

Esse novo tom de “Brinquedo Assassino” torna o filme mais relevante socialmente, digamos, mas menos assustador para o público que espera dar gritos e pular da cadeira (por sinal, algo que Klevberg já havia mostrado não conseguir fazer no fraco “Polaroid – Morte Instantânea”, seu primeiro longa, também lançado este ano). Muito disso ocorre também porque o design remodelado de Chucky o deixou mais feioso, mas não tão amedrontador quanto o original. Apesar de ótima, a performance de Mark Hamill como novo dublador de Chucky provoca mais riso do que medo (há uma ótima piada envolvendo “Star Wars”, aliás). Sem falar que o personagem agora precisa ficar com os olhos vermelhos a fim de indicar que está no “modo malvado”. No original, a representação da mudança de atitude é literalmente orgânica, já que o brinquedo de fato ganha vida e vai se tornando cada vez mais humano, inclusive nas feições (e justiça seja feita, 30 anos depois o boneco animatrônico ainda é um primor dos efeitos especiais).

Há ainda outros pontos em que os realizadores não conseguem fugir do lugar comum, como ao fazer o namorado da mãe de Andy ser desnecessariamente caricatural e facilmente odiável pelo público. Ou ainda como usam estereótipos para caracterizar os amigos do menino, inclusive fazendo a única menina ser a mais valente do grupo, com jeitão Tomboy e tudo. Por outro lado, é gratificante que, ao mostrar uma cena de uma mulher seminua, o filme decida punir não ela, mas o vizinho voyeur que a espionava, invertendo assim um dos mais famosos clichês dos slashers. Também é bem-vinda a mudança no papel do detetive que investiga os crimes de Chucky, agora interpretado por Brian Tyree Henry (“Se a Rua Beale Falasse”), ao passo que no original o único ator negro no elenco era associado ao vilão.

Trazendo divertidas referências a outros clássicos do horror (em particular “O Massacre da Serra Elétrica”, com citação direta à extravagante continuação de 1986) e culminando numa sequência que poderia transformar “A Revolta dos Brinquedos” (1992) no apocalipse de “O Exterminador do Futuro” ou “Matrix”, o novo “Brinquedo Assassino” consegue superar os tropeços e se sai como uma grata surpresa pela inovação que propõe em meio ao muito mais do mesmo que Hollywood nos empurra regularmente.