As casas e espaços que Carlitos (Lorenzo Ferro) invade e rouba em “O Anjo” são belíssimas, esteticamente decoradas com a mão clara da produção dos irmãos Almodóvar, e de uma riqueza invejável. Mas via de regra, são vazias. E quando algum sinal de vida surge nelas, o protagonista o extingue sem pensar duas vezes.
Essa é uma descrição também do próprio Carlitos, como enxergado pelo longa do diretor argentino Luis Ortega (“Lulu”). O protagonista é o anjo do título, dono de uma beleza apolínea, quase perfeita, em seu exterior, mas seu interior é um vórtex moral e emocional. E é esse contraste entre beleza e psicopatia, delicadeza e violência, que o cineasta tenta explorar – e representar – em seu longa.
“O Anjo” é baseado numa história real, sobre o homem que cumpre até hoje a pena mais longa do sistema criminal argentino. A trama regressa a 1971 para contar como Carlos Robledo Puch chegou a esse ponto. Jovem rebelde e amoral, ele vive de pequenas invasões e roubos em Buenos Aires, até conhecer Ramón (Chino Darín) e seus pais, José (Daniel Fanego) e Ana María (Mercedes Morán), e iniciar uma série impressionante de assaltos e assassinatos, que ele parece realizar por puro prazer, sem nenhum peso na consciência.
Ortega ajuda o espectador mergulhar nessa mente amoral e hedonista de Carlitos ao excluir do filme qualquer cena de investigação policial dos crimes que ele comete. “O Anjo” está interessado na experiência do protagonista durante os atos abomináveis que realizou e, especialmente, no prazer que parece extrair deles.
O longa faz uma leitura clara e abertamente homoerótica da relação entre Carlitos e Ramón. Uma atração que o protagonista nunca parece capaz de entender, ou executar – mesmo que, bissexual, o amigo não pareça avesso aos olhares do parceiro – e um desejo físico e afetivo que destoa de sua óbvia psicopatia. E a violência, o uso e o poder do revólver, seu caráter fálico e a explosão do tiro são um extravasamento dessa frustração sexual e do prazer físico que Carlitos – ainda que seduza e atraia todos ao seu redor – nunca sente com um homem ou mulher.
Essa leitura psicossexual é bastante devedora do “Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas” de Arthur Penn, misturada à sexualidade camp do cinema de Almodóvar. Produtor de “O Anjo”, o cineasta espanhol tem sua mão e sua influência inegável no design de produção de Julia Freid, que expressa as emoções fortes, mas chapadas e um tanto vazias, do protagonista; na elegância dos enquadramentos e da paleta de cores da fotografia de Julián Apezteguia e nas deliciosas músicas pop da trilha.
Essas canções, somadas ao charme e ao carisma inegável do estreante Lorenzo Ferro – revelação promissora do cinema hermano que domina a tela com seu olhar lânguido e ameaçador, e os supercloses almodovarianos de seus lábios, olhos e bunda – fazem de “O Anjo” uma jornada violenta e pop. É uma abordagem que incorre numa certa romantização da criminalidade, mas que, em termos do recente cinema comercial argentino, tem um ponto de vista e uma pegada bem mais cinematográfica que o insosso “O Clã”.
No pouco tempo que têm em cena, Cecilia Roth (“Tudo sobre minha Mãe”) e Luis Gnecco (o “Neruda” de Pablo Larraín) demonstram o talento de costume como os pais impotentes de Carlitos. E Daniel Fanego e Mercedes Morán fazem um contraponto perfeito aos dois, como um poço de imoralidade que aflora a voracidade e os desejos psicopatas do protagonista. Mas “O Anjo” vive e morre na complexa e indescritível relação de Carlitos e Ramón, e nas performances complementares de Ferro e do Darín-filho. É um tango violento, cúmplice e pop, sobre as consequências trágicas de um desejo frustrado. ■
Texto escrito como parte da cobertura da 42ª Mostra de Cinema de São Paulo e publicado originalmente em 24 de outubro de 2018. O crítico viajou a convite da Mostra.