É difícil imaginar uma comédia romântica dirigida por Danny Boyle — e, ainda por cima, uma que funcione como um musical inspirado pelos Beatles. Mas por mais estranho que pareça, “Yesterday” é uma agradável surpresa.
O cineasta inglês iniciou a carreira com filmes sobre personagens que tendem a subversões morais (“Cova Rasa”, “Trainspotting”, “Por uma Vida Menos Ordinária”, “A Praia”). Posteriormente, ainda que não tão provocativo, contou histórias de pessoas que, em busca de superar desafios (“Quem Quer Ser um Milionário”, “Steve Jobs”), ou mesmo sobreviver (“127 Horas”), passam por duras provações pessoais. Até mesmo em seus filmes de gênero (“Extermínio”, “Sunshine”) encontramos essas características. Com “Yesterday” não é diferente, mas há um evidente descompasso entre a ideia e a execução. Trabalhando pela primeira vez com roteiro do sempre espirituoso Richard Curtis (“Um Lugar Chamado Notting Hill”, “Quatro Casamentos e um Funeral”, “Simplesmente Amor”), Boyle deixa transparecer que esse filme não é “seu”.
A ideia original (de Curtis e Jack Barth) é aterradora, mas ótima: e se vivêssemos em um mundo em que os Beatles não existem? Na verdade, a coisa é um pouco mais complexa do que imaginar que a banda tenha sido vítima do estalo de Thanos: no longa, após um misterioso blecaute global que durou alguns segundos, é como se Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison sequer tivessem se conhecido. Porém, uma única pessoa reteve na memória a existência e o legado dos Fab Four: o músico aspirante Jack Malik (papel do carismático estreante Himesh Patel, mais conhecido na TV britânica). Sem se dar conta de que pode ter entrado em um buraco de minhoca e ido parar numa realidade alternativa (felizmente, o fenômeno nunca é explicado), ele vê nessa inesperada situação uma chance de se tornar um artista de sucesso, mesmo que para isso tenha que se passar pelo autor de algumas das mais famosas canções de todos os tempos.
Em termos de leveza, o filme de Boyle do qual “Yesterday” mais se aproxima é “Caiu do Céu” (2004), um singelo conto moral também sobre um jovem “ladrão”. As aspas aqui são pelo simples fato de que, tecnicamente, Jack não considera que está roubando os Beatles. Afinal, se eles não existiram, seu crime não possui vítimas, a não ser ele próprio, já que é o peso ético de seus atos que irão persegui-lo até o final.
É essa luta solitária de Jack que permite a Boyle desenvolver a camada mais cínica do personagem, que se vê condenado a nunca superar sua Síndrome do Impostor (segundo a qual, o complexo de inferioridade de uma pessoa é tamanho que ela sempre teme um dia ser revelada como uma fraude, não importa o quão boa ela seja no que faz). Para muita gente esse é um mal real, potencializado na era das redes sociais e da superexposição na internet, que nos força a nos compararmos uns com os outros a todo momento, impondo uma necessidade de sermos extraordinários em qualquer coisa — e talvez nem seja o que gostaríamos de ser em primeiro lugar. Para uma pessoa como Jack, cujo trabalho é criativo, há ainda um degrau extra de desencanto, quando ele percebe que, mesmo interpretando um clássico como “Let It Be”, as pessoas na plateia de um bar ou mesmo seus próprios pais não parecem se importar de estarem ouvindo uma obra de arte pela primeira vez. Decepção maior, porém, ainda virá quando ele conhecer de dentro os podres da fama que a indústria musical esconde por trás dos holofotes.
Esse é o drama boyleriano de “Yesterday” e ele permite uma fruição mais profunda do filme dependendo do seu grau de identificação com o protagonista. Acontece que Curtis está muito longe de ser roteirista de encomenda. Assim, a sensação que passa é que Boyle encontra muita dificuldade em moldar a argila que lhe entregaram porque o vaso já veio praticamente pronto. Considerando que Curtis é também diretor (e um diretor competente), em vários momentos você pode se questionar porque ele mesmo não dirigiu “Yesterday”, já que as interferências estéticas de Boyle são inócuas. Chega até a ser constrangedor que ele use ângulos inclinados em determinadas cenas, como se fosse um diretor iniciante querendo chamar a atenção para sua presença atrás da câmera. Da mesma forma, as transições com emojis subindo a tela soam como gracejos que o cineasta não costuma usar. E como Curtis não é dessas firulas, imaginar o filme com sua direção só alimenta a (falsa) expectativa de que o produto final poderia ter ficado ainda melhor.
Porque “Yesterday” é, sim, um ótimo filme, apesar dessa falta de sintonia entre diretor e roteirista. A habilidade de Curtis com diálogos e sua criatividade para elaborar piadas com referências da cultura pop rendem boas e altas risadas. Porém, esse é o arroz com feijão que ele já sabe fazer muito bem e de olhos vendados. O novo ingrediente aqui é o uso das músicas dos Beatles e o resultado é gratificante. Sem fazer do filme um mero musical jukebox, Curtis incorpora as canções ao longo do roteiro de maneira inventiva e funcional. Há ocasiões em que elas pontuam a narrativa (como na cena em que “Carry That Weight” ilustra um momento de angústia do protagonista). Em outras, surgem em fragmentos, inesperadamente (por exemplo, quando Jack termina uma frase remetendo a um verso que beatlemaníacos logo identificam). E mesmo quando o filme faz uso pleno dos hits da banda nas performances de Jack, elas não estão lá gratuitamente. Quando ele canta “Help!”, há um significado claro. E a canção que escolhe para competir com Ed Sheeran em uma “batalha” proposta pelo músico pop rende uma das melhores cenas do filme. Sheeran, aliás, que está impagável, mostrando bom humor ao entrar nas brincadeiras com sua persona.
A importância da memória
A partir de sua fabulação, “Yesterday” também trabalha um tema de grande importância, em especial nos dias de hoje, quando muita gente parece não ligar para a distorção de fatos históricos ou mesmo de dados científicos. Sendo o único a se lembrar das músicas dos Beatles, Jack se torna um receptáculo da História. É comovente acompanhar seu esforço para rememorar todas as composições e, ao mesmo tempo, terrível pensar que ele pode não conseguir recuperar uma maravilha como “Eleanor Rigby”.
Nisso eu me lembrei do célebre romance distópico “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury (adaptado duas vezes já para as telas), que também imagina uma realidade paralela. Na história, um grupo de resistência decide memorizar obras literárias antes que sejam queimadas pela censura do governo opressor. Guardadas na mente, elas serão preservadas para serem transmitidas às gerações posteriores. Daí a relevância da missão de Jack sobrepor seu ato de improbidade (que continua reprovável).
Cabe notar que Jack só consegue recuperar as letras das músicas dos Beatles e reproduzir a melodia com voz e violão. Ele nunca chega a recompor a integridade das obras, o que também é terrível de pensar, já que naquele mundo teríamos perdido a bateria de Ringo, o baixo de Paul e todas as sutilezas e inovações rítmicas e sonoras que o grupo nos apresentou. Assim, se por um lado Jack se vê agraciado por esse destino insólito de ser o bastião da obra dos Beatles, por outro sabe que nunca conseguirá ser uma “cópia fiel” dos verdadeiros criadores das músicas que toca. Mas ao invés de enxergamos isso como uma maldição, podemos ver o filme também como uma celebração de artistas covers, apontando para a importância que eles têm ao perpetuar as obras de seus ídolos, permitindo que sejam acessadas por quem não teve a oportunidade de usufruí-las em sua origem.
Romance desarmônico
O que soa meio fora do lugar em “Yesterday” é o romance mal resolvido entre Jack e sua amiga de infância/empresária Ellie (personagem da adorável Lily James). De certo que Curtis transborda honestidade nos sentimentos conflitantes com os quais embebe a relação do casal. As histórias de amor de seus filmes dificilmente falham e costumam ser o princípio e o fim. Porém, aqui o romance é colocado desde o início como uma subtrama, mas parece se recusar a ficar nesse lugar. Usando clichês (a corrida de sempre atrás da pessoa amada), ele começa a competir com o drama pessoal de Jack, o que acaba afetando o ato final.
Pode ser mais um indício da ingerência de Boyle, que nunca teve o romantismo como seu forte. Curtis, se fosse o diretor, fatalmente repetiria os clichês e talvez daria ainda mais espaço a Rocky (papel de Joel Fry), o estereótipo do “amigo esquisito e engraçado” que nunca falta em seus filmes. Por outro lado, é provável que ele faria as duas forças narrativas trabalharem mais próximas — como em seu excelente “Questão de Tempo” (2013), em que, também usando de um subterfúgio do realismo fantástico (a possibilidade de viajar no tempo), o protagonista reavalia suas relações amorosas e familiares a partir de decisões morais.
Mas esse exercício puramente especulativo não deve ir muito longe. O que temos é o filme de Boyle, e não é que sua visão de mundo seja de tudo inadequada para contar essa história. Apenas ocorre que, ironia ou não, ele acaba fazendo com Curtis o que Jack faz com os Beatles: fica com o crédito principal (“um filme de”) de uma ideia que não é sua e a executa como um cover, empregando seu estilo, mas sem o traquejo do artista autoral. Contudo, justiça seja feita, é o esforço de ambos que faz “Yesterday” se transformar de uma comédia burlesca em uma linda homenagem ao quarteto de Liverpool. E em tempos em que há forças tentando reescrever a História fora e dentro da tela, eles pelo menos terminam por fazer esse ontem imaginário ser um quê menos doloroso do que o real. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.