Na noite de abertura da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, após a entrega do Troféu Barroco aos homenageados Antônio Pitanga e Camila Pitanga e seus discursos emocionantes, o filme exibido foi “Escravos de Jó”, dirigido pelo cineasta cearense Rosemberg Cariry, com Antônio Pitanga no elenco. Cariry tem uma carreira de expressiva filmografia, sendo um dos mais importantes diretores do nordeste e que mais títulos tem sob sua assinatura, com especial dedicação à cultura popular dessa região do país.
Em seu mais recente longa-metragem, “Escravos de Jó”, no entanto, o cenário é outro: a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. E os temas são tantos e tão complexos que o filme não dá conta de tudo que tenta amarrar. Embora expresse uma preocupação interessante em traçar diálogos entre gerações, mitos e conflitos identitários e ancestrais, nada é suficientemente desenvolvido e em muitos momentos tais assuntos acabam recebendo um tratamento superficialmente didático.
O ponto de partida é o relacionamento entre um jovem documentarista de pais adotivos, Samuel (Daniel Passi), e uma imigrante palestina, Yasmina (Daniela de Jesus). Samuel, a princípio, investiga o barroco mineiro para a realização do seu documentário, e depois se vê investigando suas próprias origens judias. Yasmina trabalha com conservação e restauração de obras na Fundação de Arte de Ouro Preto e mantém-se engajada, mesmo que à distância, na luta de seu povo no Oriente Médio. A narrativa também inclui outros personagens que fazem parte da vida de Samuel e Yasmina ou que simplesmente cruzam seus caminhos. Todos eles são rasos e servem a função de abordar algum tópico explícito sobre a diversidade caótica de pensamentos, ascendências, crenças e movimentos no Brasil.
Há a amiga militante, que organiza manifestações; o irmão palestino radical, que é vendedor ambulante e sofre agressões xenofóbicas na rua; a professora de arte que dá aula sobre o chamado transbarroco; o livreiro amigo – personagem de Antônio Pitanga -, de origem judaica, que viveu a Segunda Guerra Mundial, mas encontra na poesia a beleza da vida e está sempre disposto a indicar um bom livro; um idoso sionista (Everaldo Pontes) que se opõe ao livreiro; uma senhora francesa que imprime certo distanciamento da cultura brasileira; entre outros.
Mas o foco é mesmo a jornada de autoconhecimento de Samuel, que é confrontado por descobertas angustiantes do passado de sua família. E nos colocando junto dele nesta caminhada de investigações, o filme propõe pensarmos uma rede de conexões, paralelos e repetições entre diferentes momentos históricos do mundo, incluindo o presente, em que houve ou há totalitarismo, opressões e genocídio. Além do conflito árabe-palestino, nazismo, escravidão e racismo são abordados, ao mesmo tempo em que se insere na trama referências à parábola de Jó e a tragédia grega de Édipo.
Nesse caldeirão de conteúdo denso, a mistura acabou por prejudicar o desenvolvimento dos argumentos e dos personagens. Textos muito explicativos fizeram com que os diálogos soem pouco realistas – além de atuações fracas do núcleo jovem – e o tom forte de sobriedade endureceu o retrato da convivência dessas pessoas tão diferentes entre si, mas que são todas humanas, afinal. Há pouca dedicação a dimensão afetiva – quando há um momento em que se aproxima de algo assim, logo se desfaz – e todos parecem presos e perdidos nesse emaranhado de identidades e violências.
Esteticamente também não há algo que chame muito a atenção, com exceção da fotografia da cidade de Ouro Preto, que capta a dualidade de uma cidade tão bonita, mas de passado sombrio, desenhada com ouro e sangue. E por falar em fotografia, incomoda a exposição do corpo de Yasmina. Ela envia fotos íntimas a Samuel, que são transformadas por ele em imagens impressas e fragmentadas de sua figura para serem coladas na parede do quarto ao lado de imagens fortes de genocídios. A contraposição imagética entre o amor e a guerra poderia ter sido representada de maneira diferente, sem que houvesse essa exposição feminina. Ao final da sessão, a sensação como espectadora é de desconexão, exatamente o contrário do que o filme tenta construir com sua estrutura de mosaico.
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.