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“Até o Fim”: reencontro íntimo entre femininos, negritudes e brasilidade

"Até o Fim"- Foto: Divulgação

“Até o Fim” pulsa intimidade. A intimidade entre as quatro mulheres de uma mesma família que se reencontram após anos de distância. A intimidade entre espectador, espectadora e as personagens. A intimidade entre a câmera, quem a conduz e as atrizes. A intimidade entre o cinema e o real… E da intimidade, sabemos, nascem afetos e tensões. O que no filme está tanto dentro quanto fora de campo e, especialmente, na relação que se estabelece entre obra e público.

A proposta aqui é de tamanha aproximação ao que se assiste, que poderia ser sufocante, pois se concentra em uma locação, uma noite, um grupo pequeno em cena, a verborragia e temas fortes. Mas os diretores, Glenda Nicácio e Ary Rosa, conduzem com sensibilidade e dinamismo, dosando bem a intensidade como quem dosa o tempero de uma comida. Além disso, o elenco é de uma entrega notável e a música, elemento catártico. O resultado é um filme que ora nos faz chorar ou engolir em seco, ora nos faz sorrir de leve ou gargalhar. Um envolvimento de beleza agridoce. Tal como a vida em si.

Primeiro conhecemos Geralda (Wal Diaz), que recebe a notícia da morte iminente do pai, já internado em um hospital. Dada a situação, logo se junta a ela, na mesa do bar à beira da praia do qual é proprietária, sua irmã Rose (Arlete Dias). Um tempo depois, é a terceira irmã, Bel (Maíra Azevedo), quem aparece. E, por fim, Vilmar (Jenny Muller) completa o grupo de quatro mulheres. Reunidas novamente, entre cervejas e a procura por cigarros, conhecemos suas histórias, suas desavenças e ressentimentos, seus amores, desamores, feridas e curas possíveis, enquanto esperam que o pai chegue ao final da sua vida.

Um pai que, acertadamente na construção da narrativa, nunca aparece para nós. A sua presença fantasmagórica, ainda que ele esteja vivo, marca, pois, o peso do patriarcado e da masculinidade tóxica com todas as suas violências – físicas e psicológicas – as quais temos conhecimento pelas falas dessas mulheres. Uma dessas falas, em específico, ganha forma como um conto de horror, narrado por Geralda, em um dos momentos nos quais o filme se deixa levar pela fabulação e a teatralidade, entendendo a importância do imaginário nos enfrentamentos e elaborações pessoais de traumas e sofrimentos.

Interessante notar como nesse processo em que o todo se forma aos poucos – já que as personagens vão chegando individualmente ao ponto de reencontro na ordem da filha mais velha até a mais nova – há sempre uma reconfiguração de espaço, de sentimentos e interações. Gradualmente, há mais camadas, mais complexidade, mas também mais completude. E enquanto se escuta toda a conversa, os corpos dessas mulheres, que são negras – aqui libertos de enquadramentos reducionistas e estigmatizantes – se tornam instâncias de localização para o olhar dedicado e não objetificador, com uma câmera que se coloca a perseguir os gestos, expressões e outros detalhes, como o movimento das mãos, onde se vê a linguagem para além de palavras.

O formato de tela mais quadrado e fechado, por outro lado, confere uma restrição de campo, um foco, pois nas mulheres e seu poder de fala já estão contidos universos inteiros. E a tela que se divide mostra esta multiplicidade de realidades que coexistem num mesmo ambiente. Então, nesta mesma mesa, nesta mesma noite, nesta mesma família, há também outros lugares. Elas são mulheres-paisagens, carregando em si mesmas e em suas vozes os elementos e vínculos do presente, do passado e do futuro, dotadas de aspectos tanto naturais quanto culturais, e conectadas pela experiência do feminino, da negritude e da brasilidade. 

Este reencontro transformador, captado por diversos ângulos, pode ser lido, então, como um ritual de expurgo, rememoração e partilha. Em “Performances da oralitura: corpo, lugar e memória”, a autora Leda Martins fala sobre como o corpo nas tradições rituais afro-brasileiras é um “corpo de adereços”, o que casa bem com a articulação imagética do filme:

Movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na pele e no cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e metonimicamente como locus e ambiente do saber e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história.  […] O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz esse conhecimento, grafado na memória do gesto. (MARTINS, 2003; p.16)*

Corpos numa performance de troca e com tanto a dizer! Inclusive, sobre o dizer e ser entendido, o filme toma para si como uma urgência. As feridas contadas e os segredos revelados não são somente dos eventos e relações familiares. Eles também são do contato com o racismo, o machismo, a misoginia e a LGBTfobia. Na abordagem desses temas, alguns espectadores podem se incomodar com diálogos que parecem carregar apelo didático. Vale mencionar que isso acontece mais explicitamente no caso de Vilmar, que é mulher trans e lésbica, em conflito com Geralda, que se mostra pouco aberta a entender sua existência. No entanto, sugiro a esses espectadores que se desloquem de seus lugares como entendedores das questões de gênero e sexualidade e pensem sobre o mundo em que vivemos e a heterogeneidade do público. Falar o básico ainda é extremamente necessário. Isso significa comunicar a um maior número de pessoas e chegar onde tais questões ainda não são profundamente discutidas.

Glenda Nicácio e Ary Rosa se destacam também por isso, portanto. Por trabalharem um cinema em suas potencialidades fundamentais de empatia e aprendizado. Desde os experimentos e afetividades de “Café com Canela”, passando pelo instigante e metalinguístico “Ilha”, e chegando aqui, em “Até o Fim”, estão traçando uma trajetória muito significativa para o cinema brasileiro, com representatividade, sensibilidade, reinvenções e força comunicativa. Do Recôncavo Baiano, onde nascem as produções, para o mundo, a dupla amplia imaginários, repensa a linguagem e produz imagens de reconhecimento e, como dito no início deste texto, de pura intimidade. Não à toa, a definição que Glenda usou para o cinema que realizam, em entrevista ao nosso podcast, é de um “cinema de comunidade”. Pode parecer simples, mas é revolucionário. ■

Nota:

ATÉ O FIM (2020, Brasil). Direção: Ary Rosa, Glenda Nicácio; Roteiro: Ary Rosa; Produção: Ary Rosa, Glenda Nicácio; Fotografia: Augusto Bortolini, Poliana Costa, Thacle de Souza; Montagem: Poliana Costa, Thacle de Souza; Música: Ary Rosa, Moreira, Hilário Passos; Com: Arlete Dias, Wal Diaz, Jenny Muller, Maíra Azevedo; Estúdio: Rosza Filmes Produções. 93 min


* MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras (Santa
Maria). Santa Maria, 2003.

 

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