Um poço é um lugar do qual se retira água, ainda que cavado sobre um terreno de subterrâneo pouco conhecido. No thriller sci-fi “O Poço”, no entanto, conhecemos com mais rigor o subterrâneo, não de um terreno, mas do indivíduo em si e de suas relações sociais. Sob a terra, localiza-se esse cenário distópico no qual Goreng (Iván Massagué) acorda. Dentro de um ambiente envolto por placas metálicas e um abismo aparentemente sem fim de andares acima e abaixo de seu nível. Em conversa com seu parceiro de “cela”, descobre que dentro do poço duplas de pessoas dividem cada espaço, tendo por atração principal uma plataforma que, desde o primeiro nível daquela escavação (o de número zero), desce diariamente contendo um grande banquete. O ponto-chave da situação é: quanto mais profundo o nível, menos o banquete chegará preservado e, portanto, quase nenhum alimento restará para as últimas duplas. Outra condição dessa estrutura é que, a cada mês, seus habitantes podem acordar em um nível abaixo ou acima do que estavam, em uma realocação aleatória.
Um resumo dos acontecimentos talvez seja crucial, ao menos até este ponto do texto, para que se depreenda que o filme dá o ponta pé inicial da maneira correta. A construção narrativa dos pontos-chave de virada e descoberta de elementos da história é acertada. O tempo entre o espectador se perguntar “o que representa essa cena?”, “o que acontecerá agora?” e as respostas que o filme se propõe a oferecer dentro de seu microcosmo narrativo é valioso. A ideia de embarcar o espectador nas descobertas da personagem principal de forma simultânea a ele é o que traz esse desnível de curvas de curiosidade e esclarecimento em um ritmo apreciado pela maioria do público. É um tempo preciso, no qual a angústia do risco de não obter respostas é contornada com a oferta delas. Exemplifico: o espectador se pergunta como a personagem principal foi parar no poço; o filme consegue trazer uma resposta quase que momentânea — o personagem explica que escolheu estar ali. Assim segue a narrativa, sem perder o ritmo.
No entanto, nessa cadeia de atos em verde, cinza e vermelho, as explicações em macro, e que talvez sustentariam melhor o roteiro, são perdidas ou estão fora de timing, culminando na maior angústia do espectador: “mas o que é esse final”?
E o que seriam explicações em macro? Caro espectador, afora a pesada crítica social presente na obra e que pode ser teorizada e explorada paralelamente, existem elementos fílmicos cuja falta acaba sendo a responsável por lhe gerar essa angústia interminável. Entendo que o diretor preferiu (ou, no caso desta obra, se fez preguiçoso) a ponto de evitar dar dicas mais precisas e importantes para acalentar as dúvidas no nível macro da história — em explicação grosseira, respostas para aquilo que dá o enlace do começo, meio e fim da narrativa, coadunando os pontos principais de compreensão do todo.
Acontece que todas as dicas da história privilegiaram o nível micro. As pequenas perguntas, pelo menos até um pouco mais da metade do filme, são respondidas pelo diretor estreante Galder Gaztelu-Urrutia e pela dupla de roteiristas David Desola e Pedro Rivero. Com isso, o trio espanhol acalenta a ansiedade do espectador: “Qual a história da ex funcionária do “Poço”?” “Por que Goreng está ali? “Ramses II vai descer com o elevador ou vai escapar?” “Baharat vai conseguir chegar ao topo?” Ao responder essas dúvidas, o filme cria expectativa no sentido de que as questões maiores, ou pelo menos algumas delas, serão, afinal, respondidas. No entanto, continuarão sem justificativas: “afinal, porque aquelas pessoas produzem um banquete?” “Por que o aparente perfeccionismo na realização do banquete?” “Qual a história do Sr. Brambang?” “Miharu tem ou não tem um filho?” “Qual a relação entre a Panacota e a mensagem?”
Ainda assim, minha frustração com o filme não é a falta das respostas macro, porque, afinal, essa imprecisão de respostas segue a proposta dos filmes de final aberto, que não necessariamente são ruins, mas, normalmente, trazem desconforto em certo nível. Por isso, avalio um filme de final aberto como “bom” ou “ruim” a partir da minha interpretação sobre a intenção do diretor.
Primeiramente, não é uma verdade absoluta que o realizador tenha idealizado uma versão única e que ele sabia, desde o início, a resposta para o final do filme. Também não é verdade que nosso propósito como espectadores seja desvendar uma verdade única a qualquer custo, como que matando uma charada para aliviar nossa necessidade de controle sobre a ficção. Na realidade, é comum que o diretor do final aberto não queira dar a entender uma única resposta. A crise é que algumas vezes os diretores deixam de dar a indicação da resposta final, não apenas por não quererem, mas porque não sabem o sentido sobre o qual caminham, ainda que tangenciem alguma direção certa. Nesse último caso, a coisa em si fica desinteressante e perde o ritmo.
Sinto, que “O Poço” se desenrola assim. É o corriqueiro: “o filme se perde do meio para o fim”; mais precisamente, ali quase no início das cenas finais de ação. A partir desse momento, a emoção é mais forte, sem dúvidas aumentando a expectativa do momento de êxtase final, infelizmente frustrado.
Tá, mas e aí? O que podemos pensar? Poderíamos teorizar a progressão geométrica da inúmera quantidade de significados possíveis, mas seria muito inutilismo de caractereres pensar em meras hipóteses para esse filme. Um roteiro que tenta trazer diversas críticas sociais para dentro de uma única metáfora do poço acaba transbordando de linhas de raciocínio que não se fecham e, por isso, podem tomar qualquer rumo, até do esoterismo. A critíca social classista começa a transbordar negativamente o limite da metáfora sobre pirâmide social, valorização do dinheiro, políticas sociais de divisão de renda, ideologias políticas, para infiltrar e se conflitar com uma ideia messiânica. Acaba em um misto de cristandade com ficção mais mágica que científica, em um final que expõe um encontro “espiritual” de Goreng e Sr. Brambang (Eric Goode), enquanto o protagonista figura precisamente um cristo crucificado que se martirizou para encaminhar uma “mensagem profética” ao topo da cadeia alimentar daquela sociedade.
E que mensagem? De paz? De pureza? Um grito de alerta? Um despertar social e ideológico pelo viés da pureza de uma criança? Um Deus que envia seu filho para salvar e trazer a mensagem para a Terra? Da natureza egóica do ser humano? Das necessidades do uso da força para se obter a ordem? Não se sabe. E não se conclui, porque o motivo se perde nesse entremeio. E se perde porque Gaztelu-Urrutia e seus roteiristas poluem o filme de informações e nos frustra pelo despropósito. Desde cenas de ação forçadas – que de mal executadas decaem para o cômico, rapidamente recuperadas, no entanto, pela sequência escatológica de corpos dilacerados, mutilados ou depredados – a críticas pontuais que não acabam bem digeridas: uma crítica ao racismo estrutural, posto como obstáculo a certas pessoas para atingir estratos sociais mais altos; uma crítica ao funcionalismo de estado cego à realidade das instituições e, de forma mais ampla, uma crítica à realidade social capitalista que faz ponte até mesmo com eventuais prejuízos originados do sistema prisional como concebido hoje.
Assim como descobrimos que o poço é mais profundo do que parece a princípio, o filme por si só corrobora essa ideia: existem mais camadas do que pensávamos. Mas Gaztelu-Urrutia perde a mão, pois ultrapassa o limite da possibilidade de conjecturas para o espectador refletir no pós-filme. Ele quer trabalhar com muita crítica e acaba transmitindo tudo de um viés superfícial.
Se algo me reteve nesse filme, principalmente pela originalidade, é a ideia do banquete. E me permito debruçar sobre essa metáfora do filme. Fiquei detida ao pensamento de como a história da alimentação e das formas de se alimentar refletem muito nossa organização social, desde os primórdios. Pensando que chefes tribais podiam ter para si garantidas as melhores porções de comida, que a “aristocracia” pré-medieval aprendeu a realizar grandes banquetes regados a exageros, tendo na abundância sinônimo de riqueza, e que a “aristocracia” pós-medieval começou a prezar pelo requinte das refeições. Hoje, ainda que superadas algumas tradições, continuamos pertencendo a uma sociedade que mata pela fome e reserva a fartura e o requinte para os níveis acima. Ainda que exista alimento em quantidade suficiente para todos os estratos, o egoísmo humano e seu indivualismo reforçado pelo sistema capitalista normalmente nutrem no homem médio uma visão indiferente sobre a comunhão de insumos e afastam a visão cósmica de sociedade no real sentido de comunidade. E aqueles que levam o “livro” para o poço, em vez de meios de defesa e sobrevivência mais apurados – como facas e cordas – devem lidar com o peso da injustiça social, a não ser que, ousados o suficiente, arrisquem-se ao martírio da luta pelo bem-estar social. Talvez, se o filme tivesse se preocupado em trabalhar mais esse núcleo, as explicações continuariam em aberto, mas com uma direção um pouco menos atribulada do que se sentiu ao final.
Em resumo, talvez seja esse o caso: “menos” seria “mais” neste filme. Um poço muito cavado, que deixou de fornecer água límpida para se contaminar pela impureza do exagero. ■
O POÇO (El hoyo, 2019, Espanha). Direção: Galder Gaztelu-Urrutia; Roteiro: David Desola, Pedro Rivero; Produção: Ángeles Hernández, Carlos Juarez; Fotografia: Jon D. Domínguez; Montagem: Elena Ruiz, Haritz Zubillaga; Música: Aránzazu Calleja; Com: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale, Alexandra Masangkay, Zihara Llana, Eric Goode; Estúdio: Basque Films, Mr Miyagi Films; Distribuição: Netflix. 94 min