“Fim de Festa” começa com a imagem de jovens negros dançando, com uma narração poética ao fundo discorrendo sobre a “memória do corpo” e uma certa “angústia tropical”. Esse recurso não-narrativo, quase experimental, que será repetido marcando o início de cada um dos três atos do filme, condensa – na manipulação do tempo pela câmera lenta; no grão estourado tornando a imagem quase videográfica, herdeira de uma certa tradição do cinema queer dos anos 90; e, principalmente, na questão da potencialidade e da liberdade dos corpos – os principais aspectos do longa do cineasta Hilton Lacerda (“Tatuagem”) já nos seus minutos iniciais.
Porque a trama pode girar em torno de uma investigação criminal, mas ela é o que menos (ou pouco) interessa ao diretor e roteirista pernambucano. O plot mezzo noir/mezzo cinema brasileiro dos anos 70 é mera desculpa para Lacerda refletir sobre um certo momento de transição, no Brasil e no mundo, em que novos corpos, ou uma nova política dos corpos, tentam ocupar e reconfigurar espaços, enquanto a velha política de vigilância e cerceamento tenta resistir, ou encontrar uma forma de sobreviver e se reinventar.
Essa dicotomia fica clara na montagem de Mair Tavares, que contrapõe o policial civil Breno (Irandhir Santos), investigando o assassinato de Emma, uma turista francesa no Recife; enquanto seu filho, Breninho (Gustavo Patriota), curte um poliamor pós-carnavalesco com Ângelo (Leandro Villa), Indira (Safira Moreira) e a prima Penha (Amanda Beça) na ressaca da folia. “Fim de Festa” alterna entre esses dois eixos, marcando uma dualidade que perpassa toda a narrativa: o poliamor jovem como liberdade x a polícia como repressão dos corpos; o Brasil selvagem x a Europa civilizada do discurso da sogra de Emma; as memórias brancas de privilégio e afeto de Breninho e Penha, que são memórias de dor e escravidão para Ângelo e Indira, negros.
Em cada uma dessas oposições, Lacerda procura enxergar quais espaços são historicamente reservados a quais corpos, e que potencialidades esses lugares permitem ou proíbem neles. Não por acaso, a história começa com Breno voltando para casa antes do planejado e encontrando o filho e os “amigos” no quarto que é seu, reforçando essa ideia de corpos jovens e negros ocupando espaços de poder e de conforto, antes reservados a velhos e brancos, que marcou o Brasil na década passada.
Ao mesmo tempo, o protagonista vivido por Irandhir Santos passa o filme todo com uma dor nas costas, uma exaustão física e um desconforto claro com o próprio corpo, como se um outro ser estivesse prestes a eclodir de sua pele a qualquer momento. E um dos aspectos mais interessantes de “Fim de Festa” é que, em vez de fazer de Breno um ícone dessa masculinidade ultrapassada, da polícia repressora dos corpos, o longa enxerga no personagem – marcado por um histórico de abuso doméstico – um homem cansado de tanta violência, tanta opressão, de todos os quadrados em que ele sempre se sentiu preso. Em suma, um homem precisando se reinventar – ou “aprender novas línguas”, como ele mesmo diz.
O plano final, em que ele tenta pôr fim a essa vigilância dos corpos, ou o momento em que cede à curiosidade de experimentar a fantasia de Pluto, mas se sente sufocado ao colocar a máscara, são sínteses claras desse conflito interno que Breno enfrenta. E em mais uma performance impecável, Irandhir Santos é o grande destaque da produção. Se “Fim de Festa” é um filme muito preocupado com espaços, o ator entende que essas novas formas de ocupá-los dizem respeito ao tempo, a um novo ritmo de ser e de existir, menos marcado por tarefas e produtividade e correria, e confere a Breno um compasso quase lacônico, controlando o tempo de seu personagem com a maestria de um co-realizador. Sua atuação conduz o longa do início ao fim e, na sequência final, Santos coroa seu trabalho com chave de ouro, ajudando Lacerda a perguntar ao público: para que serve o corpo de Breno? Quais potenciais estão aprisionados nele? Que olhares ele possui/dirige – ou pode possuir/dirigir?
Essa ideia de ocupar espaços com novos tempos/temporalidades atravessa “Fim de Festa”, desde a câmera lenta da sequência inicial até uma certa estase inerte típica dos dias logo após a folia – refletido num Recife de concreto e não muito colorido. Por sinal, a própria escolha temporal do carnaval, um período em que o passar do tempo e o uso do tempo parecem ser invertidos, ou subvertidos, servem para Lacerda questionar se todo carnaval precisa realmente ter seu fim – será que esses corpos, e as novas potencialidades que eles instauram durante a festa, não podem ser livres assim o tempo todo?
Alguns elementos não funcionam tão bem, como a versão videoarte de um podcast (uma referência à mistura de linguagens do Novo Cinema Queer da trupe de Todd Haynes e Gregg Araki nos anos 90) usada para fins expositivos. Os interlúdios poéticos entre cada ato servem bem melhor a esse propósito, remetendo à deliciosa sensualidade do longa anterior de Lacerda. Ângelo e Indira, os personagens negros, também poderiam ser um pouco melhor explorados e aprofundados. A verdade, porém, é que o filme está realmente interessado na afetuosa (e bastante original) relação entre Breno e Breninho – com uma informação sobre o colar do filho na cena final revelando “Fim de Festa” como um estudo sobre essas masculinidades que não apenas se herdam, mas se transformam, e até evoluem. E isso é algo (bom) a que não devemos resistir, mas simplesmente aceitar e amar. Em tempos de confinamento, libertemos as potencialidades de nossos corpos. ■
FIM DE FESTA (2019, Brasil). Direção: Hilton Lacerda; Roteiro: Hilton Lacerda; Produção: João Vieira Jr., Nara Aragão; Fotografia: Ivo Lopes Araújo; Montagem: Mair Tavares, Pedro Queiroz; Música: DJ Dolores; Com: Irandhir Santos, Suzy Lopes, Gustavo Patriota, Amanda Beça, Safira Moreira, Leandro Vila, Ariclenes Barroso, Hermila Guedes, Jean Thomas Bernardini; Estúdio: Carnaval Filmes; Distribuição: Imovision. 94 min