Quando realizou “A Pele de Vênus”, Roman Polanski parecia fazer um filme semi biográfico, em que revisita vários temas recorrentes em sua filmografia. Parecia também uma espécie de fechamento da obra. Mas eis que, sete anos depois, o cineasta franco-polonês já realizou mais dois longas: o irregular thriller “Baseado em Fatos Reais” (2017) e este mais recente, “O Oficial e o Espião”, onde também podemos encontrar algo de biográfico sobre o diretor.
Polanski enfrenta acusações de estupro há décadas, mas nega ser culpado. A repulsa ao seu nome, principalmente pelo movimento feminista, ficou ainda mais forte diante dos prêmios que ele conquistou com o novo trabalho, entre eles o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) no Festival de Veneza. Mais recentemente, Polanski ganhou o César de Melhor Direção — em uma premiação contestada desde o anúncio das indicações, com o filme concorrendo em nada menos que 12 categorias. O diretor acabou decidindo não ir à cerimônia, marcada por protestos na entrada e durante a entrega dos prêmios: a equipe de “Retrato de uma Jovem em Chamas” abandonou o teatro quando Polanski foi anunciado como vencedor.
“O Oficial e o Espião” não diz nada sobre a situação de Polanski, mas ao mesmo tempo diz tudo. Não que ele use abertamente a história como metáfora ou defesa, mas é que é inevitável não relacionar o seu drama com o do Capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel, sob pesada maquiagem), condenado à prisão perpétua por um crime que ele afirma não ter cometido.
No caso do personagem (real, como Polanski faz questão de destacar em letreiro no início do filme), ele era um dos poucos judeus no Exército francês, no final do século 19. A acusação sofrida foi de alta traição, por ter supostamente repassado informações confidenciais para outros países. Se Polanski se considera um injustiçado, é provável que ele se reconheça em Dreyfus. Mas dificilmente ele encontrará um Coronel Picquart (Jean Dujardin), que foi capaz de arriscar a própria pele para defender a inocência de um desconhecido ao descobrir a fragilidade das provas usadas no julgamento e na condenação de Dreyfus. As histórias do militar e do cineasta se separam aqui.
Mais do que falar sobre um tema pessoal, o filme fala sobre um problema atemporal. Cada descoberta que Picquart faz durante sua investigação pode facilmente ser relacionada pelo espectador a outros casos verídicos de acusações plantadas que o cinema, a literatura ou o jornalismo já retrataram, em diferentes situações e realidades sociais e geográficas. Igualmente, isso ocorre com as consequências da tentativa de Picquart em levar os fatos à luz. Os poderosos não querem um novo escândalo que manche a reputação das instituições, mas eles consideram que corrigir um erro e assumir que Dreyfus era inocente seria muito pior. Decidem destruir provas e perseguir quem pretende restaurar a verdade e a justiça. O plano de detalhe de um dos líderes do Conselho de Guerra apagando um charuto no cinzeiro, no momento em que eles decidem afastar Picquart de suas funções, é uma metáfora visual que simboliza perfeitamente as intenções pútridas daqueles senhores.
Utilizando linguagem e narrativa clássicas, e trabalhando novamente com seus colaboradores recorrentes (o fotógrafo Pawel Edelman, o montador Hervé de Luz, o compositor Alexandre Desplat e a atriz e esposa Emmanuelle Seigner), Polanski conduz “O Oficial e o Espião” com a esperada maestria e trabalha novamente a obsessão e a paranoia que tomam conta da vida de seu protagonista por conta de poderes conspiratórios, remetendo assim a “O Bebê de Rosemary”, “O Inquilino” e “O Escritor Fantasma”. Como Dreyfus, Picquart se torna vítima do sistema em que está inserido e que ele queria mudar.
O filme se passa na transição para um novo século, mas os costumes palacianos estão ainda tão arraigados nas esferas do poder em questão que nada parece ter mudado com o passar do tempo. A formalidade com que os militares se dirigem uns aos outros traveste suas piores intenções (e até hoje ainda há resquícios desse tratamento nas tratativas oficiais que vemos por aí, também no governo, no parlamento, no judiciário…). Nem mesmo a verve do escritor Émile Zola (interpretado por André Marcon), que publicou na imprensa o incendiário artigo que dá nome ao filme (“J’accuse”), em defesa de Dreyfus, foi capaz de arranhar a couraça dos comandantes.
Minimalista na direção ao mesmo tempo em que é grandiloquente na reconstrução impecável da época, Polanski faz da adaptação do romance de Robert Harris (também autor de “O Escritor Fantasma”) um filme denso e de numerosas qualidades técnicas. Mas por ter cara de “filme velho”, o público mais jovem não deve manifestar interesse por vê-lo. Somando isso às questões extra campo que afastam outra parcela de uma potencial plateia, “O Oficial e o Espião” pode muito bem acabar se tornando um filme menor ou até mesmo esquecido na obra de Polanski, quando tudo nele poderia muito bem levar à situação oposta. ■
O OFICIAL E O ESPIÃO (J’accuse, 2019, França/Itália). Direção: Roman Polanski ; Roteiro: Roman Polanski, Robert Harris (baseado no livro de Robert Harris); Produção: Alain Goldman; Fotografia: Pawel Edelman; Montagem: Hervé de Luze; Música: Alexandre Desplat; Com: Jean Dujardin, Louis Garrel, Emmanuelle Seigner, Grégory Gadebois, Hervé Pierre, Wladimir Yordanoff, Didier Sandre, André Marcon; Estúdio: Légende Films, R.P. Productions, Gaumont; Distribuição: Califórnia Filmes. 132 min