Não é por acaso que “Retablo” se encerra com o plano de uma porta se fechando. Durante todo o filme, várias cenas são dadas a ver por meio de enquadramentos emoldurados por janelas e portas que se abrem, ou mesmo a caçamba de um caminhão sendo escancarada. Essas molduras servem de rima visual para os retábulos do título, pequenos dioramas artesanais que representam famílias ou cenas dentro de caixas que lembram uma casa de bonecas.
E o filme do diretor Álvaro Delgado Aparício é como um retábulo de uma pequena comunidade no interior do Peru. Mais do que um estudo ou olhar sobre uma personagem ou família específica, trata-se do retrato de uma cultura – especificamente, uma cultura homofóbica e misógina. E o ponto de vista do protagonista Segundo (Junior Bejar) serve como as portas do retábulo se abrindo para dar a ver aquele universo.
Segundo é o filho adolescente de Noé (Amiel Cayo), um mestre artesão que cria seus retábulos com a mesma atenção com que ensina ao garoto sua arte e sua tradição. A relação próxima dos dois é o centro do filme, até que o jovem flagra o pai masturbando um motorista que lhes deu carona até a cidade. O mundo e as certezas de Segundo desabam neste momento, e o longa de Delgado Aparício acompanha, então, como ele lida com essa revelação.
É esse ponto de vista que torna “Retablo” uma obra um tanto sui generis na tradição do chamado cinema queer. Em vez de seguir a fórmula já quase desgastada do personagem que descobre sua sexualidade, o filme opta por focar nos efeitos que isso causa naqueles que lhe são mais próximos. Nesse sentido, ele é um longa não sobre homossexualidade, mas sobre homofobia.
Segundo passa grande parte do tempo observando e absorvendo os modelos tóxicos de masculinidade que o cercam em sua pequena comunidade: lutas tradicionais envolvendo chicotadas e castigos corporais como afirmação de virilidade; os comentários e termos machistas e misóginos do melhor amigo Mardonio (Mauro Chuchon); as brigas e a resolução de conflitos por meio da violência. Essas são as referências que os olhos do protagonista registram. E como Delgado Aparício deixa claro já na cena inicial, todas as imagens que vemos ficam registradas na nossa memória – especialmente na memória fotográfica de Segundo. Como conciliar essa homofobia tão arraigada ao amor que ele sente pelo pai se torna, então, o grande conflito do personagem: Segundo sofre porque é homofóbico? Ou porque sua cultura é homofóbica?
E o que torna “Retablo” um filme tão complexo é que essa atitude compassiva que o cineasta tem para com o filho nunca se estende para o pai. Três escolhas feitas pelo diretor são bastante sintomáticas disso. A primeira é que, a partir do momento em que Segundo descobre a verdade sobre Noé, o genitor é quase excluído por completo da narrativa – não o vemos porque o filho não consegue vê-lo. Na segunda, após um ato de violência hediondo, Delgado Aparício demonstra mais emoção e compaixão na cena de um abraço entre mãe e filho – como os justos que sofrem pelos pecadores – do que pela vítima daquele ato. E por fim, o fato de que o filme se revela disposto a mostrar cenas de violência bastante gráficas, mas não de sexo (a tal masturbação não é mais que o vislumbre de um braço operando um movimento específico), diz muito sobre a obra, e sobre o que é considerado tolerável ou aceitável no cinema.
Importante ressaltar, porém, que não se trata de dizer se essas escolhas são certas ou erradas. Mas sim que elas reforçam essa proposta do longa como um retábulo: um dar a ver a uma comunidade e a um grupo de pessoas, e sua cultura, e não a um indivíduo específico. Uma caixa escura que ganha luz quando suas portas são abertas – ideia que guia a montagem eisensteniana de Eric Williams, que justapõe planos escuros e fechados nos interiores com grandes planos gerais e iluminados das montanhas onde a comunidade reside, oposição que ressalta também o contraste entre a mente fechada daquelas pessoas e a vastidão do lugar onde vivem. Esses elementos estéticos formais permitem perceber um pouco melhor a atitude de Delgado Aparício em relação à homofobia que retrata, já que, narrativamente, seus sentimentos e sua compaixão às vezes se revelam tão turvos e confusos quanto os de seu protagonista. ■
RETABLO (2017, Peru, Alemanha, Noruega). Direção: Alvaro Delgado Aparicio; Roteiro: Alvaro Delgado Aparicio, Héctor Gálvez; Produção: Alvaro Delgado Aparicio, Enid Campos; Fotografia: Mario Bassino; Montagem: Eric Williams; Música: Harry Escott; Com: Amiel Cayo, Junior Bejar, Magaly Solier, Mauro Chuchon; Estúdio: Siri Producciones; Distribuição: Arteplex Filmes. 95 min
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.