“Eu acredito que a maturidade não é uma superação, mas um crescimento; que um adulto não é uma criança morta, mas uma criança que sobreviveu. Acredito que todas as melhores capacidades de um ser humano maduro existem na criança e que se essas capacidades são incentivadas na infância e juventude, elas agirão bem e sabiamente quando adultas, mas se forem reprimidas e negadas, irão atrofiar e prejudicar a personalidade adulta. E, finalmente, acredito que uma das capacidades mais profundamente humanas é o poder da imaginação.
[…] É por declarações como “Era uma vez um dragão” ou “Em um buraco no chão vivia um hobbit” – é por esses ‘não fatos’ tão bonitos que nós seres humanos fantásticos podemos chegar, de nosso jeito peculiar, à verdade das coisas.” (Ursula K. Le Guin¹)
A famosa história de Peter Pan, um texto clássico que atravessa gerações, foi criada por J.M. Barrie, que primeiro realizou uma peça de teatro infantil de sucesso, apresentada em 1904 com o título “Peter Pan, or the Boy Who Wouldn’t Grow”. Depois, em 1906, foi publicado “Peter Pan in Kensington Gardens”, e, finalmente, em 1911, “Peter and Wendy”, que também recebeu o título de “Peter Pan”. O livro ganhou várias adaptações para cinema e TV e, agora, a mais recente delas está disponível: o longa-metragem “Wendy”. Sim, desta vez o protagonismo é feminino. Acompanhamos tudo através dos olhos e pensamentos da garota sonhadora que gosta de contar histórias e é levada, junto de seus irmãos, para a Terra do Nunca por Peter Pan.
Este novo filme — dirigido por Benh Zeitlin (“Indomável Sonhadora”), que também escreveu o roteiro ao lado da irmã, Eliza Zeitlin — a princípio chama a atenção pela mudança do ponto de vista, e, consequentemente, por atualizações muito bem-vindas de igualdade de gênero, que não deixam Wendy presa a limitações por ser menina, como acontece no livro e em grande parte das adaptações em que a ela são vinculadas responsabilidades de uma mulher cuidadora, maternal e de atividades domésticas. Em “Wendy”, sua feminilidade e amorosidade são forças essenciais para sua coragem e espírito de aventura. Além dessa mudança, que por si só tem relevância, o que o filme traz de mais especial é a maneira como equilibra o lúdico e a seriedade, a fantasia e a realidade, o infantil e o adulto.
Para tanto, o bom elenco é fundamental e, neste quesito, a atriz Devin France, que faz a Wendy, e Yashua Mack, o primeiro negro a interpretar Peter Pan, destacam-se. Mesmo tão novinhos e inexperientes — este foi o primeiro trabalho de ambos — eles já imprimem talento de sobra no que fazem, provocando risos quando a liberdade e a vitalidade de ser criança preenchem a tela ou arrancando lágrimas em vários momentos emotivos e melancólicos. Repare, especialmente, como o olhar de Devin France comunica tanto!
Tal equilíbrio diz muito sobre a reimaginação da história — pois o filme é mais reflexivo e menos de ação e aventura, em forma e conteúdo — e também diz de um entendimento de seus realizadores sobre a dualidade do próprio livro clássico, que, além de entreter, aborda temas complexos e que são atemporais em suas questões humanas. “Wendy” alça voos sobre o valor da infância e as inquietações do crescer, a inspiração de ir além do óbvio, o lembrete de que é possível manter viva nossa criança interior e, principalmente, traz a importância dos sonhos, do imaginário e da fabulação como formas de expandirmos nossas mentes e corpos para além das amarras. Que é onde se situa também o próprio cinema. E não à toa, a protagonista, como amante e contadora de histórias, carrega a essência dessa narrativa: o poder das histórias, as que nos são passadas e, claro, a nossa própria.
Wendy e seus irmãos vivem com a mãe num lar de muito afeto, mas com limitações financeiras que tornam o ambiente um tanto duro e claustrofóbico, pois o trabalho diário na lanchonete da família é imperativo. O quanto nos toca, enquanto trabalhadores que somos, quando a mãe diz, sem ressentimentos: “Eu já quis participar de rodeios, mas os sonhos mudam.” Mais tarde, nós vemos esse detalhe incorporado à Wendy por meio da camiseta desgastada que ela veste, com uma estampa onde se lê “Prison Rodeo”. Ela também usa pequenos brincos verdes, pontos de brilho próprio e esperança. Entre pratos, talheres, mesas e clientes mais velhos e cansados, as perspectivas parecem mínimas, sendo as janelas e o trem que passa ao lado da casa um convite ao escape.
Numa noite, as crianças criam coragem e se jogam na aventura de seguir um garoto misterioso na carona de um trem, que as conduz até uma ilha distante. Nesta ilha, conhecem outras crianças que ali vivem livres e nunca crescem, a não ser que comecem a sentir amargura. Elas são lideradas pelo garoto, Peter, e protegidos por uma criatura das profundezas do mar que chamam de Mãe. Então, mais uma vez, a maternidade é referida, mas aqui ligada à natureza, à terra e aos animais, como uma fonte de energia e proteção para todos, que deve ser reverenciada e cuidada.
Quem envelheceu se torna um refugiado em outra parte da ilha, com aspecto de depredação, sujeira e abandono, muito diferente da parte das crianças onde há uma natureza vívida e fascinante. Essa diferença dos espaços demarca também a diferença de mundos emocionais. A contemporaneidade se torna matéria do filme pelo caráter naturalista dado a tudo isso que é construído. O tom de realismo mágico é bastante crível e adequado à subjetividade da narradora. Inclusive, essa aproximação com o real pode se mostrar surpreendentemente pesada, mas a magia e a doçura nunca são deixadas de lado. Em uma cena específica, por exemplo, o horror e a dor de uma mutilação não são poupados, ainda que o apelo do choque pelo explícito não tenha sido usado. Interessante ainda como essa cena serve para marcar uma origem trágica de outro grande personagem deste clássico: o Capitão Gancho.
Mas apesar de todas as suas qualidades, há algo um tanto sutil, mas importante a ser pontuado criticamente, que é a relação de separação estabelecida entre as crianças negras da ilha e as brancas que são levadas até lá. Existe um flerte ou uma associação possível com o estereótipo do homem negro místico/mágico². Este termo foi popularizado pelo cineasta Spike Lee (“Faça a Coisa Certa”, “Infiltrado na Klan”) no início dos anos 2000, em uma discussão acadêmica sobre a representação de pessoas negras em filmes estadunidenses. Trata-se do personagem negro colocado como diferente dos demais, que ajuda os brancos em suas jornadas de autodescoberta e vitória de obstáculos, mas que não possui seu próprio arco desenvolvido. Isso torna “Wendy” arriscado em termos de representatividade porque a protagonista, uma heroína típica, é branca e seus irmãos brancos também ganham arcos narrativos significativos, mas nenhuma criança negra tem essa mesma construção.
No caso de Peter, ele é marcado muito mais por permitir que a história aconteça do que por ter ele mesmo uma história pessoal mais desenvolvida com a qual o público possa se identificar. No entanto, dois aspectos aliviam o filme quanto a esse estereótipo: a escolha por um Peter Pan negro é, sem dúvidas, uma boa contribuição para a diversidade, por ele ser um personagem de grande repercussão na cultura popular ao longo dos anos. E ele tem nuances: é um menino nada previsível e com falhas. Assim, diante de ressalvas e pontos positivos, vale a discussão.
Exibido no Festival de Sundance deste ano, “Wendy” é um filme que merecia outras salas de cinema pelo mundo, tanto pela qualidade técnica que só uma projeção profissional é capaz de entregar quanto pela coletividade, pela partilha da experiência. Mas, infelizmente, tornou-se mais um lançamento prejudicado pela COVID-19, devido às necessárias medidas de controle e contenção do novo coronavírus, tendo sido lançado no Brasil direto em streaming. Será visto agora apenas em telas e espaços menores. O que não quer dizer que perde sua beleza. Pelo contrário, “Wendy” é capaz de nos fazer atravessar as janelas de nossas casas e navegar outros mares por meio do olhar, do sentir e do criar. Uma bela viagem em tempos de isolamento. ■
WENDY (2020, EUA). Direção: Benh Zeitlin; Roteiro: Benh Zeitlin, Eliza Zeitlin; Produção: Becky Glupczynski, Dan Janvey, Paul Mezey, Josh Penn; Fotografia: Sturla Brandth Grøvlen; Montagem: Scott Cummings, Affonso Gonçalves; Música: Dan Romer, Benh Zeitlin; Com: Devin France, Yashua Mack, Gage Naquin, Gavin Naquin, Ahmad Cage, Krzysztof Meyn, Romyri Ross, Lowell Landes, Kevin Pugh; Estúdio/Produtora: Fox Searchlight Pictures, TSG Entertainment, Journeyman Pictures; Distribuição: Fox Searchlight Pictures. 111 min
¹ Trechos de “Why Are Americans Afraid of Dragons?” por Ursula K. Le Guin, da coleção de ensaios “The Language of the Night: Essays on Fantasy and Science Fiction” (1979).
² 4 Estereótipos racistas propagados em Hollywood, disponível em: https://mundonegro.inf.br/4-estereotipos-racistas-propagados-em-hollywood/