Fazer animação é um processo demorado, ainda mais na produção independente, como é o caso do Brasil. Quando “Tito e os Pássaros” começou a ser realizado, em 2011, ainda não vivíamos o atual cenário de crise sócio-política no país, quanto mais uma pandemia provocada pelo novo coronavírus. Assistindo ao filme agora, após uma bem-sucedida trajetória por festivais e premiações mundo afora (venceu o Anima Mundi e foi pré-indicado ao Oscar, por exemplo), a impressão é de que os diretores foram proféticos ao imaginar uma sociedade contagiada por uma epidemia do medo.
Dirigido por Gustavo Steinberg, Gabriel Bitar e André Catoto, “Tito e os Pássaros” tem como protagonista um menino de 10 anos que vive com a mãe. De repente, uma estranha doença começa a se espalhar pela cidade, fazendo com que pessoas fiquem paralisadas quando sentem medo, seja por qualquer razão, até mesmo o pavor provocado pela própria epidemia. Tito descobre que a cura está relacionada à pesquisa feita por seu pai ausente sobre o canto dos pássaros (símbolos da liberdade) e que acabou se tornando o motivo de seu afastamento da família. Munido dessa informação, ele convoca seus amigos para ajudá-lo a salvar todos que foram contaminados e impedir que a epidemia se alastre ainda mais, já que ela também se mostra útil aos interesses de grandes corporações.
A ideia, segundo Steinberg, surgiu não exatamente por motivação política, mas sim diante de sua observação do quanto a violência vinha tornando São Paulo, a cidade onde ele vive, um lugar em que as pessoas estão cada vez mais isoladas, atrás de cercas, muros e vidros blindados, amedrontadas pelo que pode acontecer a elas fora ou dentro de casa. Se fosse lançado oito anos atrás, o filme seria recebido de uma forma. Exibido hoje, seu significado certamente é ampliado, graças à capacidade extraordinária que histórias como esta possuem de se manterem atemporais e adaptáveis. Traçar um paralelo com a pandemia de Covid-19 é inevitável em qualquer lugar do mundo. Mas no nosso caso específico, sua atualidade acabou sendo inevitável, posto que há poucos anos testemunhamos um governo usurpar não só o poder como a própria acepção do verbo temer. Nada mais apropriado.
Para representar a ambientação caótica em que os personagens do filme vivem (e, simbolicamente, nós também), os diretores se inspiraram no movimento expressionista europeu do começo do século 20. A escolha se mostra muito feliz, por criar um visual que remete à pintura a óleo, com pinceladas aclimatadas por sombras e tons de ocre, verde e azul que permeiam dos cenários à pele dos personagens. A associação de técnicas, com o uso físico da tinta auxiliando a pintura digital, confere às imagens uma beleza onírica e melancólica, de conexão imediata com as emoções que a jornada de Tito é capaz de despertar.
O protagonista é um garoto tímido e vítima do drama infelizmente comum no âmago familiar que levou à separação dos pais. A falta de comunicação entre o casal, os sonhos frustrados e infelicidades não compartilhadas irremediavelmente impactam a vida de Tito, gerando nele outra espécie de medo que o filme trata: o da solidão. E os efeitos disso na vida de uma criança fatalmente a acompanharão ao longo do desenvolvimento de sua maturidade. A insegurança e a culpa, ainda que inconscientes, geram adultos de subjetividades calcadas em neuroses e distúrbios reconhecidamente incapacitantes.
São várias as causas, portanto, que levam os personagens do filme a ficarem petrificados. E a representação dos sintomas da epidemia é precisa, pois é exatamente aquilo que o medo faz: neutraliza e imobiliza, deixa sem ação ou reação. E é justamente por concentrar nas crianças – mas também na natureza, representada pelos pássaros, e na ciência, na figura do inventor – a esperança para a salvação desse mal, que o filme evita ser também contaminado pelo pessimismo generalizado, sendo propositivo na busca por uma saída das trevas.
A trilha sonora, assinada pela dupla Ruben Feffer e Gustavo Kurlat (responsáveis também pela música de “O Menino e o Mundo”, outra animação brasileira de sucesso internacional), colabora para tornar “Tito e os Pássaros” um novo expoente da animação brasileira, que não cansa de nos surpreender e revelar talentos ano após ano, mostrando que a coragem para fazer arte neste país é também um antídoto contra a paralisia que querem nos impor. ■
TITO E OS PÁSSAROS (2018, Brasil). Direção: Gustavo Steinberg, Gabriel Bitar e André Catoto; Roteiro: Gustavo Steinberg, Eduardo Benaim; Produção: Gustavo Steinberg, Felipe Sabino, Daniel Greco; Montagem: Vânia Debs, Thiago Ozelami; Música: Ruben Feffer, Gustavo Kurlat; Com as vozes de: Pedro Henrique, Denise Fraga, Matheus Nachtergaele, Mateus Solano; Estúdio/Produtora: Bits Produções; Distribuição: Elo Company, Europa Filmes. 73 min
Texto publicado originalmente na revista Lume Scope, em fevereiro de 2019, e atualizado para esta página em julho de 2020.