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A atuação do invisível em “A Vizinhança do Tigre”

"A Vizinhança do Tigre" (2014) - Distribuição: Embaúba Filmes

"A Vizinhança do Tigre" (2014) - Distribuição: Embaúba Filmes

O teor de irreal ou surreal proporcionado pelo cinema para aliviar os percalços da realidade é o que lhe dá o sentido de entretenimento. Essa busca pelo “filme-distração” é uma das responsáveis por lotar salas de cinema e fomentar plataformas de streaming.

Entendo que parte do sucesso da sétima arte decorre do seu potencial de sobrepor a realidade, realizar uma explicação, uma tradução do que é visto ao nosso redor junto a um alívio – cômico, alegre ou fictício. Isso inspirou muitos movimentos do cinema mundial e para essa forma de se fazer arte, há sempre público.

Em certo período da história, no entanto, alguns cineastas decidiram por traduzir com mais precisão a realidade e se despir da necessidade de representar o fantástico, o ideal e o imaginário, dando um teor mais cru e próximo à “vida como ela é” – a exemplo do Neorrealismo Italiano ou o Cinema Novo no Brasil.

Quando me deparei com “A Vizinhança do Tigre”, segundo longa-metragem de Affonso Uchôa (hoje celebrado pelo premiado “Arábia”, codirigido com João Dumans, que aqui também assina roteiro e montagem), a relação das funções do cinema, como acima relatei, inquietou-me profundamente. Trata-se da história dos jovens Juninho (Aristides de Sousa), Eldo (Eldo Rodrigues), Adilson (Adilson Cordeiro), Menor (Maurício Chagas) e Neguinho (Wederson Patrício), moradores da periferia de Contagem, cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Todos são de fato vizinhos, e amigos, do diretor.

De pronto digo: não se trata de uma ficção. Os atores realizam uma “auto-interpretação”, o enredo é a própria vida, a rotina em seus detalhes. O filme não conta uma história escrita, mas a história se escreve na liberdade de se registrar o rotineiro, além do script.

Também não é um documentário. Não se trata de uma escolha de montagem perfeccionista, não há uma razão de encadeamento das cenas, não existem entrevistas e há um tom de algo que acredito ser bastante difícil de se fazer: o de atuar sua própria realidade.

A minha percepção absoluta foi a de que Uchôa transladou a responsabilidade do roteiro para os atores, como se dissesse: “Nós filmaremos a história de vocês, vivam a realidade e nos contem o que deve ser passado”. A vida segue, mas a câmera está ali e não é ignorada. As “personagens” encaram o filme como um filme, mas sem se deslocarem da própria rotina e da própria essência. A responsabilidade da equipe, obviamente, é altíssima, tendo em vista o filme como hospedeiro de uma cosmologia altamente própria, única e além da classificação “ficção x realidade”.

Ademais, a palavra “tigre” no título da obra é uma simbologia perfeita. O espectador deste filme é retirado do lugar comum para viver sob o olhar e compreensão dos atores no plano real. A prisão interna existente naquela localidade precária e afastada da urbanidade, ainda que pretensamente parte dela, é incômoda. Há um uso normalizado da violência explícita em piadas, brincadeiras e conversas, que exteriorizam uma revolta inconsciente da invisibilidade e da baixa perspectiva.

A violência é enraizada na comunidade, no seu próprio ser, como se a raiva de um felino penetrasse os moradores desde que precisaram lutar com mais garra do que o esperado para ocupar uma posição na sociedade. Uma rotina, percebe-se, bastante infantilizada e ainda lúdica, para meninos que já não são crianças – mas que talvez nunca  tenham tido uma infância por completo. O ócio provoca uma centelha externada em sentimentos de alienação para o que há fora dali e resposta agressiva aos seus próximos que, ao mesmo tempo, seriam por eles defendidos incontestavelmente, exibindo verdadeiro senso de vizinhança. ■

Nota:

A VIZINHANÇA DO TIGRE (2014, Brasil). Direção: Affonso Uchôa; Roteiro: Affonso Uchôa, João Dumans, Aristides de Sousa, Maurício Chagas, Wederson Patrício, Eldo Rodrigues, Adílson Cordeiro; Produção: Affonso Uchôa; Fotografia: Affonso Uchôa; Montagem: Luiz Pretti, João Dumans, Affonso Uchôa; Com: Aristides de Sousa, Maurício Chagas, Wederson Neguinho, Eldo Rodrigues, Adílson Cordeiro; Estúdio/Produtora: Vasto Mundo, Katásia Filmes, A Produtora; Distribuição: Embaúba Filmes. 95 min

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