A proposta da série “Avesso”, exibida na TV Cultura de São Paulo, nos anos 80, era mergulhar em eventos midiáticos populares de maneira diferenciada, mostrando o que nenhum outro programa mostraria. “Avesso Festa Baile” (1984) é o resultado de um dos episódios dessa produção, realizada pela Tvdo, coletivo vanguardista que teve papel essencial para a videoarte brasileira. Entre seus criadores está Tadeu Jungle, artista multimídia, também roteirista e diretor. Mas essa abordagem inventiva chegou a incomodar e ser censurada pelo então presidente da Fundação Padre Anchieta. Assistindo ao material fica fácil perceber o porquê. Há um forte tom de sátira e uma estética que abraça os erros, a precariedade, as descontinuidades, o nonsense. É bem um avesso mesmo, sem o acabamento comercial.
A Festa Baile do título, evento a ser descortinado pelo “Avesso”, era um programa musical promovido pela própria TV Cultura, conduzido pelo carismático Agnaldo Rayol e por Branca Ribeiro, cuja comunicação assertiva e aparição chamam a atenção no filme por eles estarem sempre “em pose”. A gravação acontecia num salão de baile, com dress code formal, e tinha a participação de um público classe média majoritariamente da terceira idade. E, assim, quando o filme começa, a impressão que se tem é que estamos assistindo a um vídeo caseiro de registro familiar, de algum bailinho onde nossos tios ou avós estariam. Não só pelas características da imagem, mas pela própria ambientação. Há casais, solteiros, amigas em grupo ou dupla, gente dançando ou à espera de um par… Todos em seus trajes especiais para o momento. Não à toa, adiante, a moda é colocada como uma questão para alguns entrevistados.
Mas essa impressão de registro familiar logo se desfaz e o que vemos é a total ruptura com o comum ou banal, mostrando pessoas e bastidores do programa de uma maneira nada convencional. É TV, é videoarte, é filme. Há experimentações de linguagem na montagem, no texto sobre a tela, na trilha sonora — em determinado momento, por exemplo, escutamos uma música de trás para frente –, nas entrevistas debochadas e descompromissadas e no modo como o próprio dispositivo é evidenciado, tratado como algo lúdico.
Várias cenas poderiam ser citadas aqui, mas fiquemos com apenas uma: Agnaldo Rayol conversando e cantando no chuveiro, antes de se arrumar para o evento. Poderia ser algo que convoca a uma identificação “gente como a gente”, mas dada a estranheza de como ele é filmado, ele se torna um personagem atípico. Como explicar, por exemplo, a sensação que a câmera nos causa quando dá um zoom em seu pingente de colar, como quem procura ler o que está escrito nele? É a pele, é o metal, os pêlos do peito, a água, tudo misturado e sendo ampliado no quadro. Estranhíssimo.
Mas nessa “anarquia” toda, entre metalinguagem e gestos disruptivos, algo incomoda. Eu sinto que não nos divertimos junto das personagens, somos levados a rir delas, pelo retrato ridicularizado de suas falas, suas vestimentas, seu modo de estar ali naquele contexto. Se fosse ficção, seria uma comédia de costumes. A performance de si aparece muito claramente, em quem conduz o documentário e em quem se deixa ser retratado por ele. As pessoas retratadas querem ser vistas, querem dizer algo, participar — mesmo que desconcertadas na interação com a câmera — e parecem inebriadas pelo momento de “glamour” da festa e da transmissão para TV, ainda que seja um glamour barato e efêmero. Mas a comicidade e a provocação crítica impostas pelo documentário/programa, acaba tendo um efeito colateral, tornando essas pessoas e suas imagens um mero espetáculo, perdendo sua dimensão mais humana.
O filme integra a Mostra Histórica da 15ª CineOP — uma seleção feita pelo curador Francis Vogner dos Reis que visa provocar uma reflexão entre o cinema brasileiro e a TV, no ano em que a TV brasileira comemora 70 anos. Em seus 45 minutos, “Avesso Festa Baile” contém muitos dos temas que estão sendo discutidos nesta edição, dedicada ao “Cinema de Todas as Telas”. E nos faz voltar não só algumas décadas, mas também a uma realidade de encontros e festas dos quais estamos privados hoje, em razão da pandemia, ao mesmo tempo que sua estética se conecta com a atual presença constante, fragmentada e muitas vezes sufocante do vídeo nas várias plataformas online nas quais estamos imersos (ou dispersos). ■
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.