Na psicanálise, “pulsão” é um conceito usado por Sigmund Freud para definir a forma que aparelho psíquico humano encontra para dominar uma excitação corporal. Na teoria freudiana, a pulsão é composta por um objetivo, uma fonte e um objeto, sendo este último o meio pelo qual a fonte da pulsão atinge seu objetivo.
No cinema, o documentário “Pulsão” é o mais recente esforço de tentar compreender o que se passa no Brasil desde 2013, quando as jornadas de protesto tomaram as ruas a partir de um fato isolado: o aumento do preço das passagens de ônibus em São Paulo. As manifestações ganharam novas pautas e novos corpos. Sob a alegação de ser apartidário, o movimento cresceu a ponto de se espalhar por todo o país até, enfim, ser cooptado pela elite formada por grandes grupos econômicos e midiáticos (fonte), cuja uma meta política bradava pelo fim da corrupção (objeto). Ergue-se um projeto de construção de um “novo país” através da destruição do programa de governo anterior (objetivo), passando pela destituição de uma presidenta progressista e democraticamente eleita, Dilma Rousseff, e culminando na eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro, associado a pautas de extrema-direita.
O que tentei fazer no parágrafo acima é um resumo simplista do que aconteceu no Brasil entre 2013 e 2019, na minha percepção. Em “Pulsão”, o esforço do diretor Diego Florentino ao lado de Sabrina Demozzi, com quem ele assina o roteiro, é certamente mais complexo, mas tem objetivo similar. O documentário adota o formato de retrospectiva para reconstituir a história recente do país, utilizando como suporte imagens de diversas origens (TV, internet, filmagens amadoras), um narrador em off (Cesinha Mattos, também autor da trilha sonora e do desenho de som do filme), cartelas de texto e uma elaborada identidade visual que se inspira no ambiente digital das redes sociais e janelas de programas de computador. A direção, associada à montagem de Rodrigo Baptista, dá um ritmo bastante ágil à forma como a grande quantidade de informações é apresentada na tela, tornando a experiência didática na mesma medida em que emula o frenesi multimidiático que constitui nossa recém-construída vivência no mundo virtual, outro tema crucial abordado pelo longa. Assim, os realizadores linkam o crescimento do acesso à internet e a popularização da tecnologia na densidade economicamente menos favorecida do eleitorado ao oportunismo da direita, que viu ali a chance de usar a manipulação política em massa de maneira inédita e decidiu que era hora de tirar a esquerda do poder.
Não tenha dúvida: “Pulsão” é um filme que se posiciona e faz isso desde os primeiros minutos. Na era do duelo de narrativas que domina o debate público e político no país, os realizadores não tentam ludibriar o espectador com uma pretensa imparcialidade. A tentativa de organizar os fatos a partir de um viés é válida, no entanto, nessa opção há sempre o risco de falar apenas para os próprios pares. “Pulsão” evita fazer isso na maior parte do tempo, podendo dialogar com um público que não se assume de esquerda graças à objetividade com que apresenta o material pesquisado. Porém, em alguns, mas importantes momentos, o filme parece supor que o espectador tem total compreensão das intenções dos agentes políticos que forjaram o impeachment de Dilma, a perseguição a Lula e o levante antipetista. Especificamente na abordagem do período das eleições de 2014 até o golpe parlamentar de 2016, as imagens, dados e demais informações são apresentadas com uma autossuficiência que entendo ser limitadora do alcance que o filme pode obter. Um exemplo disso é o modo como Eduardo Cunha entra e sai de cena, sem uma contextualização do papel fundamental que o ex-deputado teve na articulação do projeto golpista.
Outro ponto em que seria interessante o filme se deter com mais tempo é o período das eleições de 2018 e, especialmente, em seu resultado. Mais uma vez, há a impressão de que apresentar as informações basta, como se estivessem ali apenas para efeito de comprovação do que vimos nas cenas anteriores sobre o crescimento do uso do WhatsApp como ferramenta de propaganda política e disseminação de fake news. Entendo a necessidade de delimitar um recorte, porém, mesmo nesse recorte há omissões notáveis. Onde está o escândalo da JBS, a trama para “estancar a sangria”, as mentiras sobre a “mamadeira de piroca”, a facada em Bolsonaro e sua fuga vergonhosa dos debates durante a campanha? E o que mais me incomoda: por que este e outros documentários se esquivam de mencionar a participação de Fernando Haddad e Manuela d’Ávila na disputa presidencial? Ambos foram protagonistas e também vítimas daquela eleição, mas sequer aparecem ou são mencionados.
Ainda que faltem peças para terminar de montar esse grande quebra-cabeça (que, por sinal, voltaria a ser desmontado em 2020 pela pandemia – mas quem esperava por isso?), “Pulsão” é um filme de imensa relevância e que deve ser considerado tanto por seu conteúdo quanto por seu ótimo acabamento. É sempre bom e válido reavivar a memória sobre o que vivemos (estamos vivendo). Já se passaram sete anos desde junho de 2013 e a luta contra o esquecimento endurece com o rápido avançar do tempo. A história pregressa é repleta de exemplos de como o discurso dos opressores tende a se impor impiedosamente sobre o discurso dos vencidos. Portanto, “calejar a vista” com filmes sobre as questões sócio, político e econômicas do país é um exercício vital, até mesmo para desarmar gatilhos (nunca antes essa expressão fez tanto sentido) que determinadas imagens são capazes de disparar. A citar: os xingos a Dilma nos estádios, a demagogia de Aécio, a votação do impeachment, as inúmeras galhofadas de Bolsonaro.
Se fizermos um breve retrospecto dos filmes que tratam do mesmo tema, veremos que Maria Augusta Ramos preferiu a abordagem observacional, mas ainda assim crítica, em “O Processo”, como alguém que procurava entender conosco tudo aquilo, enquanto Petra Costa abraçou o lado pessoal e emocional em “Democracia em Vertigem”, adotando o formato ensaístico, mas também crítico. Já “Pulsão” arrisca um olhar mais estruturado e que parte para o ataque ao mesmo tempo em que tenta funcionar como uma espécie de cápsula do tempo: daqui 50 anos ou mais, se uma futura geração (humana ou não) assistir ao filme, ele pode funcionar como um relato que documenta o tempo crepuscular em que agora nos encontramos – ou, ao menos, tentamos nos encontrar. ■